“Fundação”, de Isaac Asimov: ficção clássica, sociedade e comportamentos

Depois de 12 milênios, a decadência do Império já está certa: em três séculos, “Destruição total!”. A psico-história, com seus cálculos e inúmeras variáveis, conseguiu prever que a única solução para a inevitável era de caos e barbárie seria registrar todo o conhecimento acumulado até então em uma grande e completa Enciclopédia. Para fazer este trabalho, Hari Seldon, o mais respeitado, temido e procurado psico-historiador, reuniu cem mil pessoas que devem se mudar para Terminus, um planeta na periferia da galáxia, onde o Império mal toca, mas também não se esforça para chegar onde outros planetas ainda existem com métodos rudimentares de geração de energia.

O pano de fundo está dado. Com cinco partes e pouco mais de 200 páginas, o primeiro volume da clássica trilogia (ou septologia, se é que essa palavra existe), Asimov conduz o leitor por uma série de crises e conflitos políticos que muito lembram outro clássico, Star Wars, de George Lucas. Este, contudo, da década de 1970 e os três primeiros títulos da obra de Asimov, da década de 1940.

Essas semelhanças, entre a saga dos Jedi e da Fundação, fica mais evidente ainda na nota à edição brasileira, da Aleph, que dá o tom da leitura. Inspirada “pelo clássico ‘A história do declínio e queda do Império Romano, do historiador inglês Edward Gibbon” e “O autor fez questão de utilizar algumas doutrinas polêmicas para basear seu futuro militarista, como o Destino Manifesto americano […] e o nazismo alemão”. Fiquei com o box da trilogia de Asimov durante dois anos maturando na estante. Depois de uma leitura decepcionante, de outro título e outro autor, e de ouvir elogios gigantes à obra do maior autor russo de ficção científica de todos os tempos, resolvi encarar a leitura. O primeiro volume só deu um cheiro do que ainda está por vir nos demais títulos da série. Agora não vejo a hora de pegar o próximo para continuar acompanhando essa história sensacional.

“O Império prometido”

O que acontece com o “povo prometido” depois que recebe sua promessa? Descobrimos que somos a capital de um futuro império que dominará toda a galáxia. Porém, estamos séculos de distância desta concretização. Como você acha que os dirigentes desse povo se comportaria? Trabalhariam com afinco para garantir que o futuro seja mesmo tão glorioso como Hari Seldon previu com sua psico-história?

No segundo volume da trilogia Fundação, “Fundação e Império”, a temática é o comodismo (ou isso seria no terceiro?). Com a “terra prometida” garantida por uma previsão do passado, os governantes de Terminus deixaram o espírito de progresso no passado – no mesmo passado onde ficaram as aparições de Seldon. O problema é que a galáxia não para tomar um suco enquanto os séculos passam para o tão esperado momento chegar.

A leitura de “Fundação” e suas duas continuações, é muito empolgante. No primeiro volume já observamos o tempo passando de forma corrida e a quantidade de personagens aumenta a cada página. No segundo é ligeiramente diferente. Começamos a leitura alguns séculos depois da primeira parte e o cenário já está muito diferente daquele que acompanhamos. Uma ameaça não prevista nos cálculos da psico-história surge e a motivação deste volume é combatê-la e encontrar informações de uma segunda Fundação.

“Um círculo não tem fim”

É possível dizer que o presente estava em “Fundação”; o futuro “garantido”, nas cabeças dos governantes de “Fundação e Império”, pelo menos até serem ameaçados por uma variável de fora da equação geral; e o passado marca o terceiro volume da trilogia, “Segunda Fundação”. 

Ao concluir a leitura da trilogia, essa foi  impressão geral que fiquei. No primeiro volume conhecemos a concepção da Fundação; no segundo, o futuro estava garantido, mas um mutante ameaça a estabilidade e o “império prometido”; já no terceiro, os olhos se voltam para o momento no qual Hari Seldon fez seus cálculos, previu toda a catástrofe inevitável que se aproximava e criou duas fundações – não uma, como estava claro até a metade do segundo volume, mas duas. Eis que encontrar a localização deste segundo grupo de Seldon se transforma na temática do fim da trilogia.
Como os demais, a leitura deste volume é fluida e empolgante. Ouso dizer que é até mais empolgante, misteriosa e com muito mais plot twists (reviravoltas) que a anterior – principalmente nas últimas páginas!!!!! Aqui a continuidade entre o segundo e o terceiro volume se dá pelos personagens. Com o desenrolar dos desafios daquela parte da história, outros personagens entram em cena alguns anos depois. Porém, não são quaisquer personagens e que não vieram de qualquer lugar. A protagonista desta vez é uma menina com cerca de 15 anos e muita coragem, inteligência e perspicácia. Planetas diferentes se conversam, uma guerra se desenrola e no fim sabemos que “um círculo não tem fim”.

Quando terminei a leitura me deu vontade de: ou começar tudo mais uma vez ou sair correndo para comprar os outros quatro títulos que dão continuidade à história – Asimov os escreveu na década de 1980, cerca de 40 anos depois da trilogia original. Não fiz nem uma coisa e nem outra: contive meus impulsos para tentar encontrar esses títulos na próxima Festa do Livro da USP. Até lá, a lembrança de uma leitura muito empolgante vai ficar martelando que a história ainda não teve e provavelmente nem terá fim.

ASIMOV, Isaac. Fundação; Fundação e Império; Segunda Fundação. Tradução de Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2009

“Nós somos muitos, somos uma legião”. Ah vá? Jura? Me poupe!

As capas e edições da DarkSide são sempre geniais e primorosas. Assim como a falecida Cosac Naif, a editora especializada em obras de ficção científica, fantasia e, principalmente, terror dedica um esforço grande para que cada um de seus livros seja único. 

Porém, não só de capas vive uma editora. Ao publicar as edições clássicas de Stoker, Shelley e Poe, a editora nos dá presentes muito bem embalados na coleção Medo Clássico. Nestes casos, os títulos teriam a capacidade de se vender sozinhos, mas com tamanha concorrência no mercado, o visual é o que faz os livros se destacarem nas livrarias e nas estantes de leitores.
Legião“, de William Peter Blatty, se limita à aparência. A capa vermelha, com um demônio e duas cruzes, é uma tentação. “Quero ler uma obra de terror real, com demônios medo, talvez um exorcismo, dado que Blatty é o criador do famoso ‘O Exercista’“, pensei ao comprar o livro e pegá-lo para iniciar a leitura. Quando terminei, contudo, vi que a edição é bonita. Só.
Claro que é preciso considerar todo o contexto do livro, publicado em 1983. Como comentei ao ler “A noite dos morto vivos“, de John Russo, o medo muda. O que despertava medo nas pessoas há 60, 30 ou mesmo 15 anos não é o deixa a maioria de nós de cabelos em pé hoje. Demônios, vampiros, lobisomens e o monstro de Frankstein, talvez pela saturação de suas imagens, não são mais tão temidos. 

Hoje, em terra de zumbi, quem desperta medo é rei. Talvez por isso os filmes de terror apelem tanto para os famosos  jump scare, porque criar uma atmosfera de medo real não parece ser algo tão trivial como era no passado. Ainda bem que temos roteiristas inteligentes que apelas para um medo psicológico – como é o caso de “Us” (2019) e “Get Out” (2017), dirigidos por Jordan Peele; ou “A Quiet Place” (2018), dirigido por John Krasinski; ou “Bird Box“, escrito por Josh Malerman. Estes três exemplos mexem com algumas questões de nosso cotidiano que não são meramente o medo do bicho papão. 

Enfim… dado o contexto, o livro de Blatty não dá medo; o demônio não “aparece”; e não tem exorcismo. São páginas e páginas de um policial investigando mortes misteriosas que seguem o padrão de um serial killer já morto, o Geminiano. Investiga, investiga, investiga e descobre-se que (cuidado com o spoiler), o espírito daquele assassino reencarnou no corpo de um padre junto com uma legião de demônios, mas estava confinado em um hospital psiquiátrico (à época ainda “manicômio”). De vez em quando ele sai do corpo que habita para matar pessoas que seguem o mesmo padrão do passado. Porém, demora todo o livro para entenderem como tudo isso acontece. Quando descobrem, o tal Geminiano descobre que o pai, a fonte de toda sua maldade e revolta com o mundo, morreu. Sem propósito, o Geminiano vai para sabe-se lá onde e tudo acaba.

O autor ainda tentou fazer uma referência a “Os irmãos Karamazov”, de Dostoiévski – foi uma visão até interessante, relacionada aos três irmãos da obra do romancista russo. Porém, o recurso parece ter sido só para suprir a falta de um fechamento mais adequado, pois não tem nenhuma relação com a história do livro.

Foi uma leitura realmente decepcionante. Apesar disso, ainda busco uma obra da DarkSide que realmente dê medo de ler. Alguém indica alguma?

Medo Clássico e o que nossa memória coletiva sabe sobre “Drácula” e “Frankstein”

Passei as duas últimas semanas de fevereiro lendo “Drácula” e “Frankstein”, nas edições da editora DarkSide. Primeiro a história do vampiro, depois a do “experimento diabólico” de Victor. A ordem, na verdade, não foi a mais adequada, porém, as duas experiências resultaram em algumas reflexões que gostaria de compartilhar aqui.

É, no mínimo, curioso ler pela primeira vez dois clássicos do horror depois dos 30 anos. Confesso que nunca tive muito interesse por ler nenhuma das obras até pouco tempo atrás. Porém, alguns meses depois de despertar essa curiosidade ganhei a obra de Mary Shelley de aniversário e a de Bram Stoker de Natal, os dois da minha irmã. Como já estava um tanto quanto saturado de obras baseadas em fatos reais e, portanto, tão duras quanto a realidade, achei interessante mergulhar em algo diferente.

Nada condizente com a memória coletiva

A primeira particularidade dessas leituras tardias foi descobrir quais são, de fato, as histórias originais. Sou daqueles que ou lê o livro ou assiste ao filme. Geralmente não gosto de adaptações e não me sinto muito interessado em recorrer à outra mídia para ficar comparando versões. Raras foram as exceções: quando ainda era muito novo, assisti e li “Código Da Vinci”, de Dan Brown; o filme “Histórias Cruzadas” (The Help), de Kathryn Stockett, me fez recorrer à leitura do livro; e, por fim, fiquei curioso para ler “Caixa de Pássaros”, de Josh Malerman, depois de assistir ao filme produzido pela Netflix. O livro de Dan Brown era praticamente um roteiro de cinema. Já os de Stockett e Malerman tinham diferenças, o primeiro na estrutura e o segundo no enredo.

Com “Drácula” e “Frankstein” a coisa foi bem diferente. Há incontáveis adaptações das duas obras para a maioria das mídias possíveis. A edição comemorativa da obra de Stoker, lançada em 2018 pela DarkSide, traz algumas imagens muito bacanas das adaptações para o cinema, no final do livro. Mesmo com essas fotos, resolvi pesquisar algumas artes de Drácula no Pinterest – eis que entrei no buraco negro que é essa rede social e demorei um século para sair. Além das artes, encontrei as várias capas que a obra já teve e suas edições e adaptações em quadrinhos. Não fiz o mesmo exercício com “Frankstein”, mas o resultado, obviamente, é o mesmo.

A questão aqui é que a história desses dois ícones do horror mundial é muito diferente daquela que eu tinha na memória. Assisti, muitos anos atrás, as adaptações clássicas para o cinema. Porém, o fator tempo e as inúmeras adaptações e aparições desses personagens, em filmes próprios ou secundários, desfez totalmente a lembrança que eu tinha dessas histórias. Enquanto lia “Frankstein” me lembrei vagamente de algumas cenas do monstro olhando por uma janela e correndo por uma colina. Apesar disso, não consegui confiar na minha memória que sempre foi dominada por um castelo, um aparato científico gigantesco, um raio atraído por contudores e a famosa frase “It’s aliiiiiiive”.

Ok, depois de procurar por essa cena, percebi que ela veio da adaptação clássica. Porém, spoiler: ela não é assim no livro!

A mesma coisa aconteceu com “Drácula”. Minha memória era ainda mais vaga sobre essa história dada a quantidade de aparições que o dentuço fez no cinema. Quem nunca leu a obra de Stoker, vale a pena escrever como você acredita que a história é e depois revisitar suas impressões ao terminar o livro. A menos que você seja um aficcionado por histórias de terror e só ainda não teve tempo de ler a obra, as histórias que temos em nossa memória coletiva é totalmente difernte. Porém, esse ponto não é nada negativo: os dois personagens são muito famosos e é natural que cada roteirista e/ou diretor lance sua própria versão sobre os clássicos. Exemplo disso é “Troia”: o filme guarda pouca relação com o livro de Homero, claro.

As versões brasileiras em diferentes linguagens

Apesar de querer ler obras de terror e menos embasadas na realidade, fiquei um pouco resistente em começar a ler “Drácula”. Eu queria uma leitura mais tranquila, para fantasiar junto com o autor. Meu medo era que a linguagem fosse rebuscada e formal demais, dado que Stocker escreveu a obra quase no final do século XIX – medo não é a melhor definição, talvez preguiça explique melhor. Contudo, ler a edição da DarkSide foi uma surpresa.

Quem traduziu a história de Stocker para a DarkSide foi Marcia Heloisa. Ela também é responsável pela introdução , pelas notas e pelo posfácio da edição. Além disso, Heloisa é uma aficcionada por Drácula, fez da obra sua carreira acadêmica e deixa essa paixão muito clara nos textos acompanham o livro e na tradução.

Marcia, essa é pra você, caso um dia leia esse texto. 💜

No curso de Letras, na USP, tive um professor que comentou que “Tradução é uma impossibilidade teórica” e é fato. Cada língua tem suas particularidades e o peso que as palavras têm é muito difícil de ser transportado para um outro idioma. Sendo assim, toda tradução para o português, por exemplo, é uma “versão brasileira” da obra original. Há quem discorde dessa questão, mas basta pensa em como seria a tradução de Guimarães Rosa para chegarmos a um consenso.

Enfim, voltanto à Heloísa, a versão dela de Drácula ficou leve e muito fácil de ler. Não há o tom formal do século XIX na edição e isso tem prós e contras. O contra é que acredito que a gente perde a “aura” da obra, afinal, a linguagem faz parte do contexto. O pró é que o texto fica muito próximo de nossa língua, principalmente a oral. A tradutora usou uma série de gírias muito comuns em nosso cotidiano para traduzir alguns pontos chaves de Drácula. Num primeiro momento isso parece bem estranho e pode até tirar sua concentração do enredo, porém, se você relevar e/ou se acostumar com essa questão, a leitura flui muito bem. Essa fluidez, inclusive, se deve ao fato de a linguagem não ser de época. Assim, é possível entrar de cabeça na obra e ter um momento superagradável com dr. Seward, Mina e Jonathan Karker e até, embora mais difícil, com o dr. Van Hensing.

Caçador de demônios fodão

Falando em Van Helsing, este personagem vale um tópico à parte. Falando mais uma vez em “memória coletiva”, acredito que a maioria das pessoas se lembre desse filme:

Hugh Jackman, como Van Helsing, no filme homônimo, de 2004

Porém, no livro de Stoker, Van Hensing é tudo menos jovem, sarado e galã. Ele é tudo, literalmente: médico, doutor nisso, mestre naquilo… ou seja, domina várias áreas do conhecimento, inclusive, como matar vampiro. Porém, ele é um senhorzinho já e não fala muito bem inglês. Aliás, é muito chato ler as falas e os relatos desse personagem nas primeiras vezes. A tradutora explica essa questão e diz que preferiu manter os “erros” das falas do personagem para não quebrar a intenção original de Stoker (é respeito pela obra que fala!).

Um romance de diários, cartas e notícias

Outra questão muito interessante de “Drácula” é que a obra inteira é composta por diários, cartas e notícias de diversos personagens. Começamos a acompanhar o diário de Jonathan Harker, um advogado jovem que foi até a Transilvânia resolver algumas questões com Drácula referentes à compra de um imóvel na Inglaterra. Depois de alguns acontecimentos macabros (mas que não dão medo), a narrativa dele é suspensa e começamos a acompanhar os outros personagens.

Não vou dar mais detalhes e sugiro que, se você não quer spoilers, não leia a Introdução da Marcia Heloisa antes da obra.

O ponto aqui é que a estrutura de “Drácula” é muito envolvente justamente porque não é um romance tradicional, aqueles com um narrador em primeira ou terceira pessoa. As cartas, notícias e relatórios, embora tenham mantenham uma linearidade, permitem ao leitor o acesso a múltiplos ângulos, sentimentos e impressões referentes à história principal. Confesso que me peguei vários momentos procurando onde é que tal personagem voltaria a escrever em seu diário tamanha era a curiosidade que Stoker desperta ao fazer as várias suspensões nas narrativas.

Afinal é horror ou não?

Para finalizar minhas impressões, acho relevante dizer que nem “Drácula” e nem “Frankstein” me deram “medo”. Em alguns momentos de “Drácula” eu tive nojo (não vou dizer o porquê), mas medo, não. Fui, sim, surpreendido em vários pontos, principalmente em Frankstein, embora as duas obras sejam um tanto quanto previsíveis. Isso tudo provavelmente acontece por conta de nossa memória sobre as duas histórias: sabemos, bem ou mal, quem são Drácula e Frankstein. Esse conhecimento prévio, de certa forma, invalida algumas surpresas e o potencial medo que as duas obras despertaram quando foram lançadas. Cabe à leitura dos originais, portanto, colocar os pontos nos is e as vírgulas nos lugares corretos para que tenhamos um contato mais concreto com as obras.

“Hibisco Roxo”: a história única e a toxicidade da fé cristã na África

Até onde vai sua fé, quando a falicidade de seus filhos está em jogo? Qual a importância da tradição e da fé e cultura locais? Quão destruidora é a cultura branca? Quão machista é a fé cristã? Qual é o valor da liberdade e o sabor de um sorriso?

São perguntas como essas que martelam na cabeça após a leitura de “Hibisco Roxo”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Não vou me atrever a responder todas, mas há algumas similaridades com a história brasileira que nos permite uma aproximação da realidade africana.

Livro de estreia de Chimamanda, Hibisco Roxo ganhou notoriedade em grandes prêmios de literatura. O romance da escritora nigeriana se destacou na categoria de Melhor Ficção de Estreia no
Hurston/Wright Legacy Award, em 2004; Melhor Primeiro Livro (Africa e mundo) no Commonwealth Writers’ Prize, em 2005; e
“One Maryland, One Book”, em 2017. Fora isso, Chimamanda ganhou notiedade após uma fala no TED, sobre o Perigo da História Única (The danger of a single story):

O perigo da história única, de Chimamanda Ngozi Adiche, em 2009

Chimamanda omeçou a ler aos 4 anos e a escrever aos 7 . Suas leituras eram de autores britânicos e isso influenciou sua escrita:

“Eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia: todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis, brincavam na neve, comiam maçãs e conversavam muito sobre o tempo e como seria ótimo se o sol desse suas caras” (em tradução livre do vídeo acima).


A realidade da Chimamanda criança, no entanto, era diferente: elas não falavam sobre o tempo porque não era necessário e comiam mangas, não maçãs. Em Hibisco Roxo, a personagem principal, Kambili, não é branca e nem come maçãs. Ela é filha de um poderoso industrial de sua cidade, frequenta regularmente as missas da igreja que o pai suporta financeiramente e não tem voz ativa para nada que vá além dos mandamentos da igreja. Ela esconde perfeitamente seu cabelo debaixo de um turbante durante a missa, afinal, mulheres não devem ter vaidade e deixar mechas de cabelo à mostra é um sinal de desrespeito na casa do senhor. Ela tem uma rotina de estudos muito bem definida pelo pai e não pode pensar em perder um horário sequer. Ela precisa, sempre, estar em primeiro lugar na sua turma, afinal, esse é o plano de Deus e de seu pai, que não teve acesso ao mesmo tipo de educação quando era criança, antes de ser recolhido por missionários brancos e católicos.

A realidade de Kambili é limitada à escola, aos estudos e às missas. Ela é reclusa nos cômodos brancos de uma casa gigante e no final do ano vai para uma vila próxima para a comemoração do ano novo. Kambili não vê e nem enxerga muita coisa além desse mundo cronometrado de acordo com as horas do Senhor.

“Quando eu li que era esperado que autores tivessem uma infância realmente infeliz para serem bem sucedidos, comecei a pensar em como poderia inventar coisas terríveis que meus pais faziam para mim. Mas, a verdade é que eu tive uma ingância muito feliz, cheia de risos e amor, em uma família muito unida. Mas eu também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não teve acesso a um tratamento de saúde adequado. Uma de minhas amigas mais próximas, Okoloma, morreu em um desastre de avião porque nosso caminhão de bombeiro não tinha água. Eu cresci sob governos militares repressivos que desvalorizaram a Educação, então as vezes, meus pais não recebiam seus salários. Então, como criança, eu vi a geleia desaparecer da mesa do café da manhã; a margarina desapareceu; o pão ficou muito caro; o leite se tornou racionado. E acima de tudo, um tipo de medo político normatizado invadiu nossas vidas. Todas essas histórias fez quem eu sou.”

Muito da fala de Chimamanda no TED de 2009 está presente em sua primeira obra, Hibisco Roxo. Seus personagens, mesmo os ricos como Kambili e sua família, não comem maçãs, mas sim mangas e inhames. As pessoas não são brancas, mas têm a cor da terra na qual seus primos e seu irmão plantam os hibiscos roxos e cuidam de outras flores e plantas. Algumas roupas são amarelas como bananas. O jogo de metáforas no livro é simplesmente lindo. Não se espera que árvores sejam verdes e a “cor de pele” seja igual ao lápis do conjunto de 24 cores da Faber Castell. Todo o colorido e todos os sentimentos são condizentes com a realidade que Chimamanda cresceu, sentiu, se formou.

A história

Há dois pontos que saltam aos olhos na história de Kambili: a repressão de um governo militar que desvaloriza a Educação e a crueldade cega de uma fé cristã que invalida toda a tradição nigeriana. Paralelos a parte, a questão política está presente na vida da tia de Kambili, uma professora universitária que sustenta seus filhos com o salário que mal ganha; cozinha os alimentos em um fogão de querosene que pode explodir a qualquer momento e, por ser crítica, está na lista negra do reitor da faculdade e tem seu emprego ameaçado a todo momento.

Já a questão da religião, ela aparece de uma forma bem cruel. Os mandamentos são o que são: mandamentos. Eles extrapolam uma lista de 10 coisas escritas numa pedra e se transformam em uma infinidade de restrições para os comportamentos, vestimentas e até pensamentos dos cristãos nigerianos de Hibisco Roxo. Kambili, por estar imersa em uma família extremamente patriarcal, sofre com essa cultura imposta pelos brancos colonizadores. Ela apanha, tem os pés queimados com água quente e quase morre ao ser repreendida fisicamente pelo pai. O motivo do castigo? Conviver com um pagão, seu avô, sem contar nada ao pai.

Hibisco Roxo é, portanto, uma descoberta e uma liberação. Kambili descobre a vida quando deixa a vida que tem. Ao sair das paredes brancas de sua luxuosa casa e da “casa do Senhor”, ela descobre o que é sorrir; o que é viver sem a permissão e as limitações impostas pelo pai; ela descobre o que é uma família. Ela se libera, pouco a pouco, de sua mente presa aos mandos de seu pai. Ela libera seu livre arbítrio, não sem antes sofrer muito, e vive, não sem cicatrizes.

A leitura, do começo ao fim, é maravilhosa. Além das questões das metáforas ligadas à realidade de Kambili e Chimamanda, ler Hibisco Roxo é acompanhar um momento único na vida de uma criança que não teve escolha de sua religião, de seu comportamento, de suas reações. A leitura é acompanhar o primeiro retrato que a autora fez de sua infância e as críticas que ela trouxe à tona de uma realidade complexa, embora não sempre negativa, mas dura e contrastante com a história única dos brancos que vivem fora do “país África” (veja o vídeo para entender a referência).

“Todas essas histórias fizeram quem eu sou. Mas, insistir apenas em histórias negativas, é deixar minhas experiência superficial, e ignorar as várias outras histórias que me formaram. A história única cria estereótipos, e o problema com estereótipos não é que eles não sejam verdades, mas que eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história.”

“20 mil léguas submarinas”: seu potencial pedagógico e a divulgação científica do século XIX

Sempre tive curiosidade de ler “20 mil léguas submarinas”, de Jules Verne, por conta do filme “A Esfera” (1998). No longa, uma esfera dourada, supostamente alienígena, é descoberta no fundo do oceano e um grupo de cientistas é levado até lá para estudá-la. Um desses cientistas, interpretado por Samuel L. Jackson, estava lendo a obra de Verne e algo curioso começa a acontecer. No filme dirigido por Barry Levinson, o personagem de Jackson só lia a obra de Verne até um determinado capítulo, pois ele tinha medo de um animal gigantesco que até ali ameaçava a estabilidade dos personagens de Verne. “Hmmm interessante…”, foi o que sempre pensei nas inúmeras vezes que assisti a esse longa.

Fora a questão do filme, quem nunca fantasiou sobre os animais e segredos que se escondem nos pontos mais profundos dos sete mares? Filmes sobre essa curiosidade não faltam, embora tenhamos o costume de olhar mais para o espaço que para nosso próprio planeta…

Fac-símile da primeira edição da revista na qual as obras de Jules Verne foram publicadas.
Fonte: Internet Archive

No geral, a leitura é bem interessante, mas achei “científica demais” e isso não é sem motivo. Ela foi publicada em uma revista de divulgação científica para jovens franceses, a Magasin d’Éducation et de Récréation, entre março de 1869 e junho de 1870. A revista se propunha a trazer conhecimentos científicos para o público leigo e, em uma de suas seções, romances que davam uma nova abordagem à geologia, biologia, além de outras áreas, e suas descobertas mais recentes daquela época. Sendo assim, dá para descontar do desfile gigante de nomes científicos e descrições que parecem ter saído de um livro do Ensino Médio.

Por falar nisso, fiquei imaginando como seria rico usar essa obra em aulas de Biologia, de Geografia e até de História, afinal, não faltam referências às viagens marítimas da época das grandes navegações europeias, latitudes e longitudes pelo globo e, claro, menções aos diferentes grupos de seres da flora e da fauna marítima em cada canto do globo.

Para quem não conhece a obra, ela retrata literalmente uma viagem de 20 mil léguas em um submarino extremamente moderno para o século XIX. Para contextualizar, um resumo “pequeno”: um monstro marinho começa a despertar a curiosidade em vários países. Avistado por diversas embarcações, em uma época de intensas movimentações pelos mares e oceanos do globo, pipocam, aqui e ali, os relatos desse monstro que logo ficou famoso e muito procurado. Quem nos conta esses detalhes é o professor Aronnax, um especialista em vida marinha, que parte em uma missão para encontrar e caçar esse ser, que ele acreditava ser um “narval”. Nessa viagem, Aronnax leva seu criado, Conselho (sim, este é o nome dele, que vem do francês Conseil) e lá conhece um caçador de baleias canadense, Ned Land, responsável por acabar com a vida do tal monstro. Eis que, depois de um encontro e um embate frustrados em alto mar, o narrador e os dois personagens citados caem do navio e descobrem que, o que até então supunham ser uma vida marinha de proporções descomunais, na verdade era o Nautilus, um submarino comandado pelo capitão Nemo, um sujeito misterioso que se distanciou da humanidade e alimenta um certo ódio pelas relações de dominadores e dominados nos (ditos) “países civilizados”. Aronnax, Conselho e Ned Land se tornam prisioneiros de Nemo e, a bordo do submarino, começam a jornada submarina repleta de descobertas fascinantes e conflitos interiores que contrastam as maravilhas que Aronnax vê e seu estado de liberdade cerceada pelo capitão.

Por não ser formado nem em Biologia, Zoologia, Geografia ou qualquer das áreas relacionadas à vida marinha, não consegui aproveitar 100% da obra. Porém, a cada novo capítulo que eu lia, fiquei imaginando como seria sensacional ter estudado essas disciplinas do Ensino Básico com apoio do livro. Na viagem de 20 mil léguas, o Nautilus passa pela maioria dos mares e oceanos do globo. Nessa jornada, Aronnax, que de priosioneiro passa a ser um passageiro deslumbrado com o que via de dentro do submarino, relata a flora e a fauna em cada uma de suas paradas e passagens. Falei que não aproveitei 100% da obra porque ela é repleta de nomes científicos e descrições desses animais e plantas que povoam as águas desbravadas pelo Nautilus. É muito interessante ver que Jules Verne fez questão de descrever quais eram os seres vivos típicos de cada uma das regiões, transformando a viagem, que poderia ser massante, em um estudo e um relato da riqueza das águas salgadas da Terra. Se não bastasse isso, o autor ainda se dedica a trazer informações interessantes sobre navegações, descobertas e acontecimentos históricos relavantes em cada parte do globo.

Com tanta informação relevante, imagino que professores, de diversas disciplinas da Educação Básica, devem se deliciar com possibilidades infinitas de atividades e estudos. Quando me deparo com leituras que despertam esse “lado docente”, fico criando mentalmente essas possibilidades: talvez dividir os capítulos da obra de Verne entre a turma e pedir pesquisas de imagens dos peixes citados; pedir aos estudantes para traçar a rota do Nautilus com base nas latitudes e longitudes que Aronnax nos revela; elencar as informações históricas sobre as descobertas e navegações relatadas na obra e refletir sobre as épocas em que cada uma aconteceu…

São tantas essas possibilidades que, pra mim, a leitura foi bem agradável. Apesar de ser muito científica e ter pouca ação – afinal, a maior parte do tempo os personagens estão confinados no Nautilus e só observam a vida submarina de dentro da embarcação – é indiscutível a importância da obra de Verne para a história da literatura científica. Várias vezes me peguei imaginando qual era a recepção da obra pelo público ao qual ela se destinava. Sem internet, jovens franceses do século XIX podiam contar apenas com livros e outras publicações para conhecer um pouco mais sobre o mundo. Sendo assim, 20 mil léguas cumpre com o papel de levar o leitor nessa viagem e quebrar a barreira do espaço. Ao apresentar detalhes da flora e da fauna do Mar Vermelho, por exemplo, os leitores da época também conseguiam informações históricas, religiosas e científicas sobre o porquê desse nome tão peculiar.

Para mergulhar nessa fantasia (e aqui fica uma dica para quem vai ler), tentei fazer a leitura seguindo a ordem de sua publicação original, lendo de dois em dois capítulos, e pensando como Verne conseguia suspender o leitor e despertar sua curiosidade para a sequência do próximo número da Magasin. Segundo a apresentação de Rodrigo Lacerda, na edição da editora Zahar, “20 mil léguas submarinas” foi um dos três maiores sucessos de Verne e da revista na qual ela foi publicada.

Por fim e como sempre, duas reclamações. Pra mim, a apresentação de Lacerda dá dois furos: O primeiro é um spoiler sobre o capitão Nemo e, por isso, aconselho adiar a leitura dessa parte da edição da Zahar – isso aumenta o mistério que envolve o personagem ao longo da obra; O outro ponto é a afirmação de que Verne é pai da ficção científica, desconsiderando (obviamente) Mary Shelley e sua obra “Frankstein”, além de outras obras que, aqui e ali, já tinham aliado ciência e literatura. O título de Verne é compreensível, dado o sucesso que o autor fez com suas obras e a influência que ele exerceu no gênero, porém parece ser bem injusto.

De qualquer forma, “20 mil léguas submarinas” é muito interessante também para quem estuda Divulgação Científica – fico imaginando como é que o mestrado que fiz nessa área não abordou em nenhum momento essa obra e esse gênero literário!!!! Afinal, Verne consegue aliar de forma bem interessante os conhecimentos acumulados até o século XIX sobre a vida marinha com uma fantasia envolvente e curiosa. Não apenas a obra, como também a revista na qual ela foi publicada, me faz pensar em como a ciência perdeu a importância nos dias atuais. Hoje, consigo me lembrar de duas revistas científicas: a Superinteressante e a Revista Fapesp. A primeira foi a publicação que me motivou a estudar jornalismo. Minha mãe adorava a revista e a assinou por um tempo quando eu e minha irmã ainda eramos crianças. Cresci lendo algumas das matérias da Super e lembro que me encantava com as informações e com a forma como elas eram apresentadas. Embora não consiga falar com propriedade sobre a qualidade da revista atualmente, tenho a impressão que ela se distanciou muito de um propósito de fazer divulgação científica. Já a segunda, Revista Fapesp, é uma publicação extraordinária. A Fundação para Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) mantém a publicação há anos e traz, em cada uma de suas edições, as novidades dos pesquisadores brasileiros nas mais diversas áreas do conhecimento. Ela é genial e traz uma linguagem um pouco mais simples, cumprindo com a missão de divulgar a ciência para um público “quase” leigo.

[Resenha] Pra quê entender o que são as ‘criaturas’ em “Caixa de Pássaros”?

Estava ansioso para assistir ao filme. Minha irmã já tinha falado do livro e mais alguma amiga também comentou algo sobre ele. Assim que ficou disponível na Netflix, assisti. Adorei a ideia, o roteiro, o desenvolvimento, a proposta, a atuação da protagonista. Nas redes sociais, porém, vi algumas pessoas dizendo que não entenderam nada: “Quem assistiu Bird Box e sentiu que faltou explicações? Tô tipo HAN”. Sim, estamos falando de Bird Box ou “Caixa de Pássaros”. Contudo, a questão central é: precisa mesmo de explicação?

O filme estreou no dia 21 de dezembro deste ano, 2018, na Netflix. O livro, de Josh Malerman, é de 2014, cuja tradução foi lançada em 2015 pela editora Intrínseca. No longa, Sandra Bullock é quem assume o papel de Malorie, uma mulher na casa dos 30 ou começo dos 40, aparentemente uma artista reclusa e não muito sociável. Ela passa um sermão duro em duas crianças. Ela é seca, dura, séria, nem um pouco maternal. Parece preocupada com o que vai acontecer, mas não deixa isso transparecer na voz e na forma como trata o Menino (Boy) e a Menina (Girl), nomes do casal de pequenos, de apenas quatro anos. Logo vemos que ela não é chamada de mãe, mas sim pelo nome próprio. “Malorie?” A menininha chama por ela em alguns momentos do longa. A falta do termo materno dá a entender que a relação entre ela e as crianças é fria e calculista. Pra quê nomes? Há alguma explicação para isso? Precisa de alguma explicação? Ela rema um barco, em um rio largo e o casal vai sentado à sua frente, todos com vendas nos olhos.

No livro, a coisa é um pouco diferente. Malorie é jovem, tem cerca de 25 anos e as crianças chamam ela de mamãe, apesar de ela chamar as crianças de Garoto e Menina, na tradução (errada a meu ver) da edição brasileira. Não sabemos ao certo a profissão da protagonista, mas sabemos que ela tem uma irmã, Shannon. Acompanhamos a descoberta da gravidez, resultado de uma única noite com um homem sem muita importância; a confirmação da gestação e, ao mesmo tempo, as notícias e reações de algumas pessoas a um estranho evento que começou na Rússia. As pessoas estavam tapando as janelas das casas com papelão e cobertores. Não era recomendado olhar para fora. “Não abra os olhos”. Criaturas ou seres malignos ou alienígenas estavam enlouquecendo as pessoas que ousavam enxergar. A loucura levava a atos de violência e ao suicídio. Sem saber o que está acontecendo e o que são essas coisas, as pessoas precisam se adaptar para sobreviver.

O enredo, tanto do livro quanto do filme, é o mesmo. Duas narrativas caminham juntas: o momento presente, no rio com Malorie e as duas crianças vendadas remando para algum  lugar; e o passado, a adaptação a um mundo incerto, enquanto Malorie ainda está grávida e enfrenta o começo daquela “epidemia” (se é que era um vírus ou uma doença) e procura sobreviver. Ela vive em uma casa, que não é sua, com outras pessoas. Nenhum deles sabe ao certo o que há do lado de fora.

Esse jogo de cenas, do presente e do passado, aumenta o suspense. Já sabemos como será o ‘futuro do passado’ que nos é apresentado, mas queremos saber mais o que levou Malorie àquela situação. O que a motivou a entrar, vendada e com duas crianças, em um barco e seguir rio abaixo? Onde estão os outros personagens que conviveram com ela na casa? O que ela está procurando? No filme acompanhamos essas cenas de longe, pelos olhos da diretora, Susanne Bier; já no livro, acompanhamos um pouco mais de perto, a partir de uma narrativa em terceira pessoa, mas que só sabe o que acontece no mundo a partir do que Malorie também sabe, sente e, principalmente, escuta. Essa primeira diferença faz a imersão do livro ser mais profunda que no filme e acredito que seja aí que mora o problema.

Estamos acostumados a ter explicação para tudo. Hoje, todos têm uma opinião na ponta da língua para política, artes, economia e todo e qualquer assunto de humanidades – engraçado que ninguém se arrisca a contestar um engenheiro, mas com um historiador a coisa é diferente, não é mesmo? Além disso, algo que não está explícito, explicado com detalhes e fácil de ser entendido, parece perder valor. O problema de buscar sempre uma explicação é que não entendemos o que nos é ofertado. Na verdade pouco importa o que são as criaturas em Caixa de Pássaros. A história não é sobre elas e, de preferência, espero que não seja, caso haja uma continuação. Pra quê precisamos saber se são alienígenas, seres maléficos, um vírus, Deus irritadinho, Diabo se divertindo ou o autor que não sabe explicar? A história não é sobre isso!

Como uma “história de terror psicológico em um mundo pós-apocalíptico”, como é definido na apresentação do livro, o que importa é como os personagens pensam, sentem, se adaptam, se divertem, lutam, pensam, fazem estratégias… sobre como eles querem sobreviver e o quanto o cenário atual coloca dificuldades neste caminho. Você já tentou andar à noite pela casa sem acender nenhuma luz ou durante o dia de olhos fechados? Tudo é escuro ou borrões luminosos e, claro, seu dedinho bate na quina do sofá. Imagine essa situação com algo te rondando. Algo que você não sabe o que é e, se você quiser descobrir, vai morrer? Você escolhe se render à curiosidade ou se manter vivo? Malorie escolheu viver e, mais que isso, escolhe proteger o casal de crianças. É isso que importa. As criaturas são só coadjuvantes, mais nada.

O filme, em si, tem uma fotografia estonteante. O rio e toda sua imensidão rende cenas lindas. A casa, toda protegida com cobertores, nos passa aquela sensação de confinamento. No livro não é só um pouco diferente: a narrativa sobre o rio é tensa, não sabemos o que pode ter ali observando, espreitando ou até atacando a protagonista e as duas crianças. Dentro da casa, o medo do exterior vêm à tona e um espírito comunal domina o convívio do grupo recluso. Apesar de o filme criar um cenário muito próximo ao do livro, há algumas diferenças interessantes de serem observadas.

Caixa de pássaros?

A primeira diferença marcante está relacionada ao nome da obra. No filme e no livro há uma caixa de papelão com pássaros, daí “Caixa de Pássaros”? Não exatamente. No longa, a caixa é carregada pela Menina ao longo do Rio. Sabemos que os pássaros se agitam na presença das criaturas, portanto, ela é um alarme importante e está presente em toda a história. Já no livro, os pássaros também servem de alarme, mas para indicar a aproximação de pessoas também e não apenas das ameaças desconhecidas que estão do lado de fora da casa. A caixa sequer é levada na viagem pelo rio, como foi feito no filme. Sendo assim, ela tem um papel totalmente secundário, ou melhor, um papel metafórico: assim como as aves, os humanos estão trancados em suas próprias caixas, protegidos do mundo externo por cobertores pregados nas janelas e por vendas que limitam a visão. Neste ponto, a “Caixa de pássaros” é, portanto, mais explícita no filme que no livro – seria porque as pessoas precisam sempre de explicação para tudo que veem? Talvez. Foi uma opção do roteiro, mais para justificar o nome do filme que para ser fiel à história de Malerman. Pra mim isso foi um ponto fraco do longa, afinal, o nome do filme leva as pessoas à procurarem uma razão naquilo que não precisa.

Em que mundo você vai colocar seus filhos?

Há uma outra comparação que rende mais um ponto ao livro: em que mundo as crianças nasceram, cresceram e vão se desenvolver. Logo no primeiro capítulo da obra, o autor já nos apresenta essa preocupação da protagonista:

Malorie sabe que quatro anos podem facilmente virar oito. Oito se tornarão doze em um instante. E então as crianças serão adultas. Adultos que nunca viram o céu. Nunca olharam por uma janela. O que doze anos vivendo como gado fariam com suas cabeças? Será que há um momento em que as nuvens do céu passam a existir apenas em suas mentes e o único lugar onde os filhos se sentirão à vontade será atrás do tecido negro das vendas? (p. 9)

Esse temor não aparece no filme, deixando a reflexão para o espectador. Porém, é uma questão muito interessante para ficar de fora do roteiro. Mas aí podemos voltar à questão: pra quê explicar ou explicitar? Aqui a resposta é mais clara: porque este é (ou pode ser, a depender da interpretação do leitor) o foco, o ponto principal de toda a história: a luta de Malorie pela segurança e pelo futuro das crianças.

Sabemos que uma delas (ou as duas) deve ser filho(a) dela. Sendo assim, o instinto de sobrevivência e, acima disso, o instinto maternal de Malorie é que saltam aos olhos em cada decisão da protagonista. No rio, no momento presente, ela se preocupa com a segurança das crianças e se orgulha da forma como as treinou para ter uma audição extremamente apurada; na casa, onde ela convive(u) com outras pessoas, a preocupação é se manter viva para ter o(s) bebê(s).

Sendo assim, tudo gira em torno da relação de Malorie com a maternidade em um mundo coberto por vendas e cobertores, em uma Caixa de Pássaros. Isso fica mais evidente em um detalhe já mencionado: no livro as crianças chamam a protagonista de “mamãe”; no longa, de Malorie. O filme apaga a questão da maternidade, chegando até a mostrar, em algumas cenas, que a personagem principal não está tão confortável com a ideia de ser mãe. Esse desconforto, contudo, não está relacionado ao cenário atual e ameaçador, mas sim à vida solitária e aparentemente avessa à vida em sociedade de Malorie. Já no livro, a personagem não tem dúvidas sobre sua maternidade, inclusive quando a mãe pergunta se ela irá interromper a gestação frente ao caos que começara a se instalar no mundo.

No filme, Malorie não quer que as crianças tenham falsas esperanças relacionadas a um mundo inacessível; no livro, ela busca e se prepara para esse mundo. Há, portanto, uma mudança importante de foco que faz com que o roteiro do longa seja menos rico que a obra original.

Representatividade

Agora é hora de dar crédito ao filme: apesar de o longa perder esse foco principal, ele ganha muito em representatividade. Este é um tema que está na crista da onda e cada vez mais forte. Com a ascensão de governos de extrema direita e seus representantes homofóbicos, racistas, misóginos e xenófobos, a Netflix parece estar levantando cada vez mais forte a bandeira das minorias – vide as animações She-ra e Superdrags, por exemplo.

No livro, as aparências parecem importar pouco e dão lugar às sensações e percepções. Contudo, Tom é branco, loiro e de barba ruiva. Já no filme, ele é interpretado Trevante Rhodes, que ganhou notoriedade com o filme “Moonlight: Sob a luz do Luar”. O filme, de 2017, dirigido por Barry Jenkins, conta a história de uma criança negra e gay que cresce em um mundo de crimes e drogas. Representatividade lá, representatividade aqui e não para por aí.

Além de Tom, outros personagens ganharam rostos e personalidades mais “atuais” e se distanciaram um pouco da história de Malerman. George, o dono da casa onde Malorie se abriga, no livro, é substituído por Charlie. Interpretado por BD Wong, ele é gay e tem uma casa toda luxuosa, toda mobiliada com seu Pink Money, claro.

No momento em que o longa passa a focar na casa, Charlie estava recebendo a visita de Douglas (John Malkovich), um advogado misógino e homofóbico que queria impedir que o vizinho gay e seu marido fizessem paredes de vidro na casa. Ele não queria ver a aberração que seria a convivência de um casal homoafetivo a poucos metros de sua porta, assim como vários membros da família tradicional brasileira não querem que os filhos vejam uma animação que fala de homossexuais, mas não veem problemas em uma sobre estupro, com cenas de sexo quase explícito e etc. Fora essa questão (e esse pequeno desabafo), Douglas é o cético da casa: ele é sempre contrário às decisões do grupo e gera conflitos desnecessários com Malorie e outros moradores por conta de seus preconceitos enraizados – conflitos que são sempre repreendidos de forma dura por Malorie com frases que todo mundo gostaria de dizer para aquelas pessoas irritantes e perversas que votaram em Bolsonaro. No livro, Douglas é Don, também cético e também contrário às decisões do grupo, mas sem a carga forte de preconceito do personagem de Malkovich.

Outra mudança de papeis está na personagem Olympia. O nome é o mesmo, sua característica inocente e assustada também, porém, no filme, ela é interpretada por Danielle Macdonald, uma mulher loira e gorda.

Saldo: negros, homossexuais, gordas, bolsominions. Todos juntos, trancados em uma casa, sem poder olhar pela janela e tendo que conviver com suas personalidades marcantes. Portanto, se o foco do livro é a maternidade, no filme ele é composto, em partes, por preconceitos e nossa sociedade atual.

Com tudo isso exposto, pra quê explicar o que são as criaturas do lado de fora, sendo que temos que lidar com outras problemas por vezes mais desafiadores como a criar filhos e por vezes mais complexos como os preconceitos de uma supremacia branca e rica? Não procure explicações para as criaturas, foque no que elas causam e obrigam as pessoas a fazer: conviver em um espírito comunal e/ou lutar pela sobrevivência dos filhos. Isso é Caixa de Pássaros.

Como seria o mundo sem distinção de gênero? [Resenha de “A mão esquerda da escuridão”, de Ursula K Le Guin]

Qual é a primeira pergunta que fazemos sobre um recém-nascido? A resposta é rápida, porém, e se a mãe dessa criança respondesse: “Esse ser não tem sexo”; ou, para quem nunca viu algo parecido, respondesse: “É um andrógeno”. A pergunta, no fundo, é: E se nossa sociedade não tivesse distinção de gêneros? Sem homem e nem mulher?

A primeira resposta, com a questão do gênero secularizada em nossa mente e sociedade, tende para analisar as implicações para nossa própria história. Em resumo, mulheres não seriam a construção social que sempre foram, como defende Simone de Beauvoir. Elas não ficariam na sombra dos homens. Sendo mais prático: teríamos mais escritoras, mais cientistas, mais estadistas, mais presidentes; também não teríamos estupros, feminicídio, cozinhas sendo consideradas a morada da mulher e, talvez, não teríamos escravidão, guerras, ativo e passivo.

Essa primeira resposta é, sem dúvida, formulada com mais detalhes por uma mulher. Por mais que nós, homens, tentemos ser empáticos com elas e com a causa feminista, é impossível, logo na largada da argumentação, ter a visão do que uma mulher passa ao longo de sua vida.

Voltando à pergunta, uma segunda resposta depende única e exclusivamente de um exercício de imaginação. É, de fato, a conjectura do “E se”, como a questão propõe. Arrisco a dizer que, na verdade, não somos capazes de dar uma resposta completa, talvez nem estudiosos da Antropologia ou da Sociologia conseguem a menos que usem comparações com sociedades primitivas. De fato, uma sociedade sem distinção de gênero já foi observada aqui e ali ao longo de nossa história, mas elas ficaram em um passado realmente distante. Tanto Beauvoir quanto Lévi-Strauss já trataram do tema ao analisar algumas sociedades indígenas. Contudo, mesmo ao responder nossa pergunta central com comparações ainda temos aqueles conceitos sobre gênero tão enraizados em nosso mundo. Lembrando que todo estudo, especialmente os da área de humanas, são feitos por um estudioso inserido e formado na nossa sociedade. A subjetividade pode ser minimizada ao máximo, mas é quase impossível de extingui-la quando usamos observações para tecer comentários sobre um povo, uma nação ou um único indivíduo. A prova mais fácil disso é considerar que a linguagem é ideológica, como defende Bakhtin.

Impossibilidades e limitações já apresentadas, vamos à imaginação. Antes, contudo, precisamos considerar dois pontos: não há identidade de gênero, mas há homens e mulheres como seres biológicos, não socialmente formados e enquadrados em posições de homens e mulheres. Com essas ressalvas, imaginamos, logo de cara e como já colocado, que não há injustiças e delegação de tarefas, papéis, funções. Para isso acontecer e garantirmos a procriação da espécie, a gravidez da mulher não pode, obviamente, ser encarada com um fardo ou um empecilho pelos homens. É única e exclusivamente uma função biológica, como em qualquer outro animal. É complicado pensamos nessa questão hoje, mas estamos em um exercício de imaginação, certo? Ok.

Sem fardos e tarefas todos fazem tudo. Mulheres constroem, homens constroem; Mulheres limpam, homens limpam; Mulheres ganham um salário X, homens ganham um salário X. Trabalho, educação e comando não são ligados ao gênero, portanto temos uma sociedade igualitária no sentido literal da palavra e não equânime. Igualdade parece até ser uma questão única e exclusivamente imaginativa para nós; portanto, equanimidade é uma luta neste cenário (o atual). Esse tipo de pensamento não existiria. Contudo, vai um aviso: se você pensou “Ufa, não existiria feminismo!”, você não entendeu ainda a proposta do texto. De fato não existiria feminismo porque ele não seria necessário. Não haveria a subjugação da mulher ao sistema patriarcal, ao homem, às relações de comando masculinas.

No âmbito do trabalho, a questão dos salários iguais seria factível. Não teríamos em nossa história o aproveitamento da mão de obra feminina, por ser mais barata, como aponta Marx e Engels em suas obras. Também não existiria a dupla, tripla ou décima jornada feminina, obviamente. Se todos são realmente iguais, não há em quem mandar, quem controlar, quem escravizar. Aqui entra uma nova dificuldade desse exercício que é enxergar essa possível sociedade sem o capitalismo. Porém, podemos recorrer ao comunismo e tudo fica simples. Poderia haver outro sistema econômico que não seja aquele pautado pela igualdade que não seja o comunismo? Claro que podemos estender a imaginação e pensar em um sistema completamente novo, mas qual? Essa discussão não cabe aqui.

Do trabalho para as outras esferas da sociedade, podemos pensar também na questão do direito. Se considerarmos, no entanto, que o trabalho humano move e constrói tudo, o direto seria, talvez, um mero detalhe. O que ele definiria? Propriedade privada? São todos iguais e todos têm direito a tudo, porque, então, haver um papel que diga que esses 40m² são meus? Dispensável. Ele talvez definiria regras de comportamento? Qual seria o motivo disso se consideramos que os principais crimes (aqueles que assustam tanto a classe média) são consequências de uma vida injusta e sem oportunidades? Talvez, nesse caso, a legislação iria discorrer apenas sobre crimes hediondos ligados a uma mente perturbada, como serial killers. Contudo, se mentes desequilibradas são resultado de um desenvolvimento falho na infância, ou seja, tudo ligado à frustrações sexuais envolvendo o pai e/ou a mãe (simplificando ao máximo a teoria de Freud), haveria crime hediondo? Não. E a natureza má do humano? Eles, de fato, seriam naturalmente malévolos ou essa é também uma construção psicológica e social? Acusar um pobre de maldade é motivo para o Direito Criminal traçar algumas linhas e enclausurar ou eliminar essa vida, quase desconsiderando o motivo da maldade; acusar um rico é outra história. Igualdade? Só na imaginação!

[Editora Aleph, 2014. Trad. Susana L. de Alexandria]

Esse exercício, embora interessante, é realmente bem difícil de ser feito sem muitas leituras e/ou horas de reflexão. Se perguntarmos para alguém na rua, a pessoa vai invariavelmente dar uma das respostas anteriores ligadas à nossa realidade que distingue gênero. É inevitável. Se você não quer parar para pensar nisso ou, na verdade, quer pensar um pouco sobre o assunto, vale muito a pena fazer a leitura de “A mão esquerda da escuridão”, da escritora norte-americana, Ursula K. Le Guin. Na obra de ficção científica, um terráqueo é enviado para o planeta Inverno com a missão de vender um aspirador de pó. O aspirador, na verdade, é uma liga de mundos, o Ekumen. Genly Ai, o Enviado, como ficou conhecido naquele planeta, ou Móvel, sua função no Ekumen, precisa averiguar a receptividade dos comandantes desse planeta em aderir à liga ou “família” e usufruir de uma rede de conhecimentos e à “[…] tentativa de reunificar o místico e o político”, à “sociedade” com cultura; à “forma de educação [ou a] uma escola muito grande” (p. 139).

Missão à parte, o que Genly Ai encontra em Inverno é uma sociedade sem distinção de gêneros. Na maior parte do tempo, não há divisão entre homens e mulheres. São seres andrógenos com características tanto femininas, quanto masculinas na percepção de Genly e de outros estudiosos do Ekumen. Em geral são seres andrógenos, homens-mulheres ou mulheres-homens que não têm órgão sexual enquanto não estão no ciclo reprodutivo (o kemmer). A sociedade toda é construída sobre essa questão, porém, como é colocado em um dos capítulo, essa sociedade pode ser uma experiência:

Parece provável que eles tenham sido um experimento. A ideia é desagradável. Mas, agora que há evidências de que a Colônia Terráquea foi um experimento, com a implantação de um grupo Hainiano Normal num planeta com seus próprios proto-hominídeos auctóctones, a possibilidade não pode ser ignorada. A manipulação genética humana seguramente foi praticada pelos Colonizadores; nada mais explica os hilfs de S ou os hominídeos alados degenerados de Rokanan; o que mais explicaria a fisiologia sexual getheniana? (p. 95)

O trecho destacado acima até mostra todo um contexto que nos é apresentado apenas neste ponto do livro. Embora Genly tenha explicado o que era o Ekumen em outras ocasiões para os moradores de Inverno, o cenário macro ao qual a história está inscrita. Isso é só um detalhe, mas parece ser também uma propaganda do que se passava pela cabeça de Le Guin ao criar um universo de possibilidades para outros livros. Esse universo, chamado Hainish, na verdade, começou com outra obra, “Rocannon’s World”, de 1966. “A mão esquerda da escuridão” viria apenas em 1969 e foi o trampolim da autora para o reconhecimento na área da Ficção Científica.

Como uma exploradora de novos mundos, a obra de Le Guin se assemelha muito com um artigo antropológico. Embora o narrador central diga logo no primeiro parágrafo que seu relatório será feito em forma de uma narrativa, as observações que ele faz sobre o mundo no qual aterrissou lembram muito o olhar de um estudioso que pela primeira vez observa pessoalmente uma tribo indígena.

Farei meu relatório como se contasse uma história, pois quando criança aprendi, em meu planeta natal, que a Verdade é uma questão de imaginação. O fato mais concreto pode fraquejar ou triunfar no estilo da narrativa: como a joia orgânica singular de nossos mares, cujo brilho aumenta quando determinada mulher a usa e, se usada por outra, trona-se opaca e perde o valor. Fatos são mais sólidos, coerentes, perfeitos e reais do que pérolas. Mas ambos são sensíveis. (p. 15)

Essa sensação de estarmos lendo um estudo antropológico, algo presente na primeira metade do livro especialmente, é mais que justificado quando temos mais informações sobre a escritora: “Seu pai era o eminente antropólogo Alfred L. Kroeber e sua mãe era a escritora e, também, antropóloga, Theodora Kracaw Kroeber Quinn.”[1] Contudo, a decisão (não muito bem explicada) de Genly Ai de subverter qualquer rigor acadêmico ao optar por uma narrativa, ajuda e não ajuda muito. Os estilos se confundem ao longo do livro, mas essa confusão, provavelmente intencional, acabam por deixar algumas partes cansativas. O enredo parece não avançar muito até mais ou menos a página 190 quando uma reviravolta na história acrescenta um pouco mais de ação e deixa as questões políticas ligadas à missão de Genly Ai de lado.

Embora eu tenha encarado essa questão como um dos poucos pontos negativos da obra, a história é, sim, muito envolvente (depois que deslancha). Aparentemente as 190 primeiras páginas do livro são toda uma preparação para as 100 restantes. É neste momento que vemos, pelos olhos de Genly Ai e de outros narradores (as vezes com nome, as vezes desconhecidos) como a sociedade em Inverno é construída, especialmente em Karhide e Orgoreyn, duas “nações” separadas por um deserto, mas “inimigas”. Essa questão, inclusive, nos faz pensar muito no contexto no qual Le Guin estava escrevendo, ou seja, no meio da Guerra Fria, em 1969. As duas nações não se atacam, mas estão constantemente em conflito. Não há, contudo, guerra e nem ataques a países amigos de meus inimigos, como ocorreu no embate gelado entre Estados Unidos e União Soviética.

E a questão dos gêneros?

Você pode voltar à essa pergunta, afinal, pouco falei dela. Na verdade, na minha impressão da leitura, a questão pouco aparece ao longo do livro. Embora ele seja vendido com essa propaganda, temos apenas um capítulo no qual nos é explicado toda a questão pelos olhos de uma estudiosa do Ekumen, porém, ao longo da narrativa, o que deveria ser característica central da obra (levando em conta, mais uma vez, a propaganda), assume um papel secundário, de poucos comentários aqui e ali. Genly Ai mostra algumas vezes o conflito que há para um terráqueo sexuado no relacionamento e convívio com “alienígenas” assexuados. Ele observa características femininas e masculinas na voz e nas atitudes dos personagens com os quais lida ao longo de sua jornada.

O que me decepcionou um pouco foi ver que, embora esses seres de Inverno pudessem ser experiências de manipulação genética, o experimento provavelmente falhou. Apesar de ser um planeta sem estupro, guerras e sem complexo de Édipo, as aparências, o orgulho e o prestígio, que recebem o nome de “shifgrethor” são “o intraduzível e importantíssimo princípio de autoridade social em Karhide e em todas as civilizações de Gethen” (p. 26)

É provável que essa frustração seja intencional: seres humanos, mesmo despidos de seus gêneros, continuam seres humanos pautados pelas aparências. Se for este o caso, a obra é realmente coesa, só não é a porcaria da propaganda do livro:

“A menos que consiga superar os preconceitos nele enraizados a respeito dos significados de feminino e masculino, ele corre o risco de destruir tanto sua missão quanto a si mesmo.” (como apresentado na sinopse da contra-capa do livro)

Na verdade o conflito de Genly Ai relacionado ao preconceito acima descrito não é tão forte assim ao longo da história. Ele se prende, sim, aos rótulos de feminino e masculino quando está  descrevendo algum personagem ou alguma situação, porém, a questão do “shifgrethor” é muito mais dominante que a questão do gênero e ele precisa lidar essencialmente com essas aparências dos outros personagens durante muito tempo. Em um momento específico a vida de Genly depende da confiança em um outro personagem, mas essa confiança passa pelo preconceito ligado ao “shifgrethor” e não ao fato de aquela pessoa ser ela, ele ou elx.

Nas palavras de Le Guin

Incomodado com essa questão, resolvi pesquisar um pouco. Logo após terminar a leitura de “A mão esquerda da escuridão”, um amigo, Marcos Mekaro, publicou no Facebook o link para um blog pessoal (Saboten-en) no qual ele começou a traduzir textos interessantes de outras línguas para ajudar a galera que se interessa pelas mesmas leituras que ele, mas que têm o idioma como uma barreira. O texto de estreia do blog foi “Uma guerra sem fim[2], da Le Guin.

[Editora Verso Books (EUA), 2016]

Publicado em 2016 pela Verso Books como um ensaio na edição comemorativa de “Utopia”, de Thomas Morus (capa ao lado), o texto, como apresenta Mekaro, “toca nos problemas das formas como em geral são encaradas a opressão e a resistência e oferece algumas reflexões sobre o papel da ficção fantástica em combater a postura de que as coisas como são ‘sempre foram assim, sempre serão assim, e é assim que elas devem ser.’”

O texto é maravilhoso e fiquei imaginando o prazer do Marcos ao traduzí-lo. Porém, o que nos interessa aqui é o ponto de convergência com “A mão esquerda da escuridão”. Por tratar de opressão, Le Guin passa invariavelmente pela questão do gênero. Vou destacar as palavras dela, traduzidas pelo Mekaro.

Se um imperativo biológico [que determina a constituição de hierarquia de poder das sociedades] tão inato existe, seria ele igualmente imperativo nos dois sexos? Não temos provas indiscutíveis de diferenças inatas de gênero no comportamento social. Essencialistas em ambos os lados da discussão afirmam que os homens têm uma inclinação inata a fundar hierarquias de poder, enquanto as mulheres, apesar de não fundarem essas estruturas, as aceitam ou imitam. De acordo com os essencialistas, o sucesso dessa programação masculina é por isso quase certo, e deveríamos esperar sempre encontrar cadeias de comando, o “superior” comandando o “inferior”, com o poder concentrado em poucos, como um padrão quase universal das sociedades humanas. (LE GUIN, 2016 | do Blog Saboten-en)

A postura de Le Guin é bem clara na passagem acima. Se o tal imperativo biológico existe, homens estarão no comando, certo? A realidade prova o argumento. A escritora continua:

A Antropologia fornece algumas exceções a essa suposta universalidade. Etnólogos descreveram sociedades que não possuem cadeias de comando fixas; nelas o poder, ao invés de existir preso dentro de um sistema rígido de desigualdades, é fluido, compartilhado de forma diferente em diferentes situações, operando em sistemas de freios e contrapesos tendendo sempre ao consenso. Eles descreveram sociedades que não classificam um gênero como superior, apesar de sempre haver alguma divisão sexual do trabalho, e das atividades masculinas serem celebradas com mais frequência. (LE GUIN, 2016 | do Blog Saboten-en)

Aqui vemos o conhecimento e a influência que a Antropologia teve na formação de Le Guin. No entanto, o trecho mostra que ela teve contato com esses estudos e descrições de sociedades sem cadeiras de comando fixas. Isso é perceptível em “A mão esquerda da escuridão”, afinal a pessoa responsável pelo governo de uma nação, Karhide, por exemplo, pode engravidar e voltar a ser “neutro” depois de um tempo. O gênero não determina se aquele rei ou rainha têm mais ou menos capacidade de comando, mesmo esse rei sendo tachado como “louco” por Genly Ai. Esta questão é tratada logo no começo do livro, quando o personagem principal ainda insiste em enquadrar os seres de Inverno em rótulos. Porém, a loucura desse rei também está ligada ao  jogo de “shifgrethor”, portanto, inato aos seres daquele planeta (e talvez à raça humana e sua variáveis?).

Aparentemente, no entanto, a questão da fraqueza dos gêneros na obra também é compartilhada pela própria Le Guin quando ela passa a refletir sobre suas obras e o papel das utopias na literatura.

As ficções científica e de fantasia desde sua concepção oferecem alternativas ao mundo presente e real do leitor. Jovens em geral abraçam essas histórias porque, em seu ânimo e ânsia por experiências, eles acolhem as alternativas, as possibilidades, a mudança. Havendo aprendido a temer até mesmo que se imaginem mudanças reais, muitos adultos renegam toda literatura imaginativa, se orgulhando de não ver nada além do que já sabem, ou pensam que sabem.

Ainda assim, como se temessem seus inquietantes poderes, muitas das ficções científica e de fantasia são tímidas e reacionárias em suas invenções sociais, a fantasia se agarrando ao feudalismo, a ficção científica às hierarquias militares e imperiais. Ambas em geral recompensam seus campeões, sejam heróis ou heroínas, apenas por feitos incrivelmente másculos (Eu mesma escrevi assim por anos. Em A Mão Esquerda da Escuridão, meu herói não tem gênero, mas seus atos de heroísmo são quase exclusivamente masculinos.) Na ficção científica em particular é comum encontrar a idéia que discuti acima, de que quaisquer pessoas de status inferior, se não forem rebeldes constantemente prontos a agarrarem a liberdade por meio de feitos audazes e violentos, são ou desprezíveis, ou sem qualquer importância. (LE GUIN, 2016 | do Blog Saboten-en)

Como destacado em negrito, Le Guin tem a consciência de que em um mundo sem gênero os atos masculinos predominam. A necessidade inconstante de Genly Ai de usar o pronome masculino para todos os personagens mostra isso. Embora possamos imaginar que essa questão é proposital para talvez mostrar a “natureza do ser humano”, mesmo que sem gênero, é possível encarar as palavras de Le Guin como uma autocrítica por cair no senso comum que tanto a incomoda.

Portanto, se não for pra ler um livro sobre um mundo sem gêneros, pra quê ler “A mão esquerda da escuridão”? Abstraindo essas contradições podemos aproveitar a leitura tanto pela “ótica antropológico-imaginativa” feita por Le Guin quanto também pelo enredo. Como dito anteriormente, o livro não é 100% uma coisa tampouco 100% outra. É uma mistura que pode cansar um pouco pela falta de desenvolvimento na primeira metade do livro, mas que surpreende e compensa a espera na segunda parte.

Uma outra ótica, ligada à Antropológica, é a da Linguística. Em diversos momentos os narradores abordam a questão das palavras e do conhecimento possível à partir do mundo real. Para pensar: teríamos avião se nunca tivéssemos visto um pássaro ou um inseto voar? O livro responde essa questão de uma forma bem bacana. Outro ponto, mais sobre conhecimento, é sobre a “inutilidade de saber a resposta à pergunta errada”. Se você erra na pergunta, não consegue construir uma argumentação lógica e tampouco convincente. Se não faz as perguntas certas, como pode tomar uma decisão bem estruturada? Esse ponto também aparece no livro.

No geral, portanto, há muito mais pontos positivos que compensam as decepções relacionadas à questão do gênero. Sendo assim, a leitura vai cair muito bem nesse clima mais friozinho que temos agora no outono e no inverno brasileiros! =)


[1] Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ursula_K._Le_Guin

[2] Link: https://sabotenen.wordpress.com/2018/05/01/uma-guerra-sem-fim-uklg/

Uma janta bem servida, cercas e padrões [Resenha de “Os Despossuídos”, de Marx (Boitempo) e “O Touro Ferdinando” (animação)]

Meio da tarde de um sábado. Ainda é verão, embora os calendários já apontem que algumas folhas deveriam ficar amareladas nas árvores do Ibirapuera, o Central Park brasileiro. Um clima que é usado como vergonha nacional, principalmente por aqueles que vivem os ares nova iorquinos durante alguns anos da vida. Esses acreditam que a Paulista e a Quinta Avenida são realmente cópias uma da outra, o que confere um pedacinho estadudinense em solo de Macunaíma. Esses, embora uns outros esses, acham que nem isso presta no país e que o bom é viver em terra de gente realmente civilizada e de bom gosto.

Apesar dos anúncios político-meteorológicos, fome. Então três pães de queijo já estão no forno. Pães de queijo do tamanho normal, não aqueles de “coquetel”, mais aperitivos que comida de verdade. Não contente com o cardápio, que deveria ser a última refeição do dia, G. pede um lanche com meia porção de cebolas fritas e uma garrafa de dois litros de Itubaína.

Enquanto o motoqueiro não chega com o pedido, banho. Um cigarro antes e logo o banho já está no fim. Por algum motivo muito estranho para G., o contato com a água o fez se sentir já satisfeito para o dia. “O lanche talvez tenha sido demais”. Problema algum! É claro que não é necessário comer tudo. Uma faca resolveu o problema criado e resolvido em poucos segundos.

Enquanto era a vez do pão de queijo, G. consegue equilibrar muito bem a tarefa de morder o controle e apertar quadrado, triângulo e bolinha no garfo da comida. Com o lanche, especificamente esse lanche, esse nível de habilidade ainda não foi conquistado. Como manda o hábito nessas situações, a Netflix já está estrategicamente ligada e pronta para o RuPauls Dragrace, “Season 8, Episode 5; quando a Raja Gemini está vestida como uma francesa do século XVIII”, a favorita de G.

Copo vazio e sujo de molho, é o guardanapo da cozinha, de pano mesmo, que faz a vez de um de papel para limpar a boca. “Esse pano vai direto para a caixa de roupa sujas depois dessa”, um pensamento estratégico para não deixar rastros do crime. Outro cigarro e o plano já fora revisado: esse pano volta e o terceiro round será com a outra metade do lanche. “Season 3, Episode 6. Três? Puts, disse 8 agora há pouco. Que ofensa para 3 ser confundida com a 8!”. Bem ruim de shade, provavelmente.

Poderia voltar a jogar, mas ainda falta a sobremesa. Próximo episódio acompanhado de farinha láctea Nestlé com yogurte de morango Pauli… “yogurte de morango da deixa-pra-lá-a-marca”.  Marca francesa que infelizmente não tem no Brasil. Para garantir o doce do prato, uma colher (de sopa) de doce de leite, da concorrente daquela segunda marca, a “não-olho-rótulos”.

Ao deitar na cama, logo depois da última colherada e quase na metade do episódio, a barriga está um tanto quanto: cheia; estufada; farta; invejável; a ponto de explodir. Impossível para G. ficar deitado, ele precisa se sentar durante um tempo para esse bolo se espalhar pelo intestino. Agora é só escrever mais um pouco e logo G. estará pronto para voltar para o travesseiro.

Isso foi em uma sexta-feira. Amanhã, balada. “É só ficar sem comer o dia inteiro e não beber muito.” Ou seja, gastar a comanda mais em água que em álcool. “Ou o que é melhor: gastar em álcool mesmo e ficar bem chapado, dançar muito e curtir a noite”. Problema resolvido, como sempre.

G. adora comer, mas também adora balada, dançar, música alta, RuPaul’s Drag, dançar e a cor rosa. Tudo é rosa em casa; camisas e camisetas rosa; uma mochila quase branco de tão claro o rosa. Enfim, cor de rosa; mas não as rosas vermelhas e nem amarelas ou as brancas. De tanto rosa, G. é frequentemente relacionado ao elefante rosa de Dumbo; o Pimpão da animação Divertida Mente; ou uma espécie de Barney Rosa.

Na balada, um rosa quase tão chamativo quanto a variante neon da cor. Ainda com três águas marcadas na comanda, G. dança, conversa, fuma, fala mal das drags que ele lembra o nome; com três cervejas a mais, começa a interferir na conversa do grupo do lado e causa risadas altas em quem consegue ouvir na área. Consegue algumas conversas em grupo durante alguns minutos antes de vsnoopoltar para a pista. “Há sempre uma estratégia para não ver o grupo inteiro saindo e te deixando para trás de propósito, saia antes”, tweetou certa vez. G. é incapaz de dar o primeiro passo para tentar conhecer alguém que parece interessante, mas jamais suspeitariam do diagnóstico “Timidez” quando o viam interagindo em público e com amigos. Por este motivo, ele dança, se diverte e não faz lista de quantos beijos ganhou ou conquistou ao longo da noite.

Esse tipo de medo de rejeição já estava superado, porém, não é bom tocar em algumas cicatrizes durante um tempo. Sem precisar dizer as palavras “gordo” e “gay”, uma mera coincidência com o nome de G., o peso e a orientação sexual dele já ficou evidente. Não houve nenhuma tentativa de esconder. As duas características são mero detalhes que fazem da vida dele um potencial (e real) excluído de alguns grupos sociais e de alguns outros grupos de potenciais namorados. “Ter o corpo de um Garfield na cama? Só se for o meu depois das lasanhas do domingo”. Claro, certo?

Para ser do grupo que importa, ou ele precisa ser “Fierce, Fabulous and Fishy” ou ser “forte, fabuloso e gostoso”, não há outra alternativa além das versões em inglês e sua tradução adaptada. Sendo assim, nas vezes que G., bêbado, tentou beijar um “Triple-F”, sempre recebeu um olhar estranho. Uma vez foi quase de repulsa misturada com dó. Dessa vez, porém, G. tinha bebido apenas uma cerveja e nada além disso. Houve uma conversa padrão de três tópicos: nome; o que faz; qual a drag favorita. Um desdobramento um pouco maior, por incrível que pareça, no segundo ponto (optativo) e não no terceiro (obrigatório). Quando a oportunidade abre uma janela para a possibilidade, a tentativa é seguida pela dispensa. “Afinal, quem conversa em balada?”

“Qual o tamanho da bebida: pequeno, médio ou grande?” Um lanche antes de voltar para a casa, porque dançar dá fome. O bom dessa vez é que estará sentado no ônibus até que a barriga estufada diminua. “Isso se esse motorista não estiver ajeitando a carga a cada curva e em cada parada em ponto”, sempre se alertava, mas nunca deixou de correr o risco necessário.

Mais uma vez: não é preciso definir o físico e a orientação sexual de G., algumas informações são suficientes para enquadrá-lo em um grupo mental muito bem estabelecido. No mínimo você leitor pensou em alguém que come o mesmo tanto, talvez logo no café da manhã; ou outrem que sabe todas as falas do seriado de drags – insossas quando comparadas com as drags brasileiras, porém juram que valorizam a arte nacional: “Inclusive eu colocaria o nome de minha drag de Vanessa Thunderfuck; brasileiro com uma homenagem à Alaska!”, uma declaração não muito difícil de ouvir.

Definições e padrões são como cercas, eles delimitam um grupo socialmente estabelecido. Todos precisam se encaixar em pelo menos um ou dois para ter uma vida saudável psicológica e financeiramente. Outros escolhem se encaixar em mais de um para assumir uma personalidade própria que tem algo de diferente para questionar a cada dia.

Embora haja alguns grupos obrigatórios e outros optativos, alguns são te dados, as vezes sem querer, as vezes para um orgulho imenso, algumas vezes para te fazer ficar sem crença na justiça: ser gordo, ser gay, ser negro, ser efeminado, ser único, ser realmente transparente. São grupos atribuídos “sem querer” porque você não escolhe ser algumas dessas coisas; “para um orgulho” porque não é fácil aceitar que ser diferente não é abominável como a grande mídia pinta constantemente; “sem crença na justiça” porque sabe o quão corrompido é um sistema que cria leis para beneficiar e salvaguardar uma minoria branca, rica, heterossexual com uma cota aceitável de homossexuais, donas do poder da comunicação e fortes influenciadores na ideologia política da população.

O caminho que G. percorreu até o botão “Foda-se” antes de viver bem com as escolhas e personalidade que tem é similar ao que o Touro Ferdinando percorreu até a pequena fazenda de floricultores nas imediações de Madri. A animação do Studio BlueSky e dirigido pelo brasileiro Carlos Saldanha permite uma interpretação única do processo de auto-aceitação e das cercas que separam nossa realidade em grupos definidos.

Logo no começo da história vemos Ferdinando ainda nos primeiros meses, como um bezerrinho. Enquanto outras crianças da idade dele brincam de luta entre si (ou jogam futebol na hora da Educação Física), o pequeno está preocupado com a flor que ele encontrou no meio do chão de seu quintal. No chão batido e marrom, o verde e vermelho da pequena flor só não se destacam mais porque estão protegidos por uma velha carriola azul. Ferdinando é diferente e, por isso, sofre bulling dos demais bezerros do estábulo. Seu pai, contudo, é forte, vistoso, o mais valente dos adultos. Ele consegue a vaga de emprego em uma boa empresa, porém, não volta para a casa. Antes de o pai partir, contudo, Ferdinando pergunta se haveria algum futuro para ele que não envolvesse as lutas nas touradas. Ele queria sentir o cheiro das flores e não da poeira da arena e do seu sangue escorrendo no pescoço.

Incomodado com a situação e ciente de que o pai não voltaria, F. resolve fugir. Ele pega um trem (que poderia ser um ônibus) e desce longe de onde cresceu (que poderia ser cidades grandes como São Paulo ou Campinas). Ele é encontrado por uma garotinha, filha de um floricultor e é levado para viver no paraíso que sempre sonhara (praticamente o Vale). Enquanto ainda pequeno, Ferdinando passou a ajudar a família no evento anual de flores. Até esse ponto não há spoilers, afinal, são os vinte primeiros minutos de filme. Contudo, esse trecho é suficiente para ver a importância que o elemento cerca tem na animação. Elas separam, em um primeiro momento, os filhos dos pais. Estes ficam em um ambiente competitivo e feroz, nada parecido com o mercado de trabalho. Já os filhos têm nas figuras paternas as mais plenas inspirações para se tornarem os grandes touros que derrotarão os mais bravos toureiros nas arenas. Eles sonham como os pais e agem como eles. Aqui há uma interpretação adicional: a interação entre pais e filhos e talvez a perpetuação de preconceitos de geração em geração.

A segunda cerca presente no filme, separa os alazões e os touros. Aqueles são lindos e sabem bater uma crina como ninguém. Eles falam movimentando a cabeça e a crina segue o movimento dando um brilho especial ao quadro. São esbeltos, altos, loiros e de olhos azuis. Imponentes, extravagantes, ricos. São o modelo ideal, o resto é pura cópia de demasiados desvios de homossexualidade, personalidade e genética. Na verdade, são desvios de desigualdade social, porém, este termo não pertence ao vocabulário refinado de alazões – mesmo quando um deles resolve cursar Ciências Sociais em uma faculdade pública. Estes, para deixar a crítica mais clara, são as Barbies de academia, ou seja, gays brancos, ricos, com físico trabalhado em esteroides, de olhos claros, camisetas de alguma marca fancy, com contas no Instagram seguidas por mais Ks que uma banana é capaz de suportar. Eles ditam o que é ser gay e todos precisam seguir o padrão. Se G. não perder 35 quilos e ganhar no máximo metade em massa muscular, ele não poderá ser um alazão. Se nesta tarefa ele perder muito peso e ficar excessivamente magro, está fora do padrão; se ganhar massa muscular demais, estará apto para outro padrão, um usado como fetiche para os alazões, mas nunca uma possibilidade real de relacionamento; se continuar gordo, será mais indigno ainda de desfrutar da companhia dos perfeitos. É como gostar de flores em um ambiente incentivado à luta.

Por fim, mas limitando apenas essa interpretação de Touro Ferdinando e não excluindo outras possíveis, a última cerca é mais sutil. Ela é aquela entre a vida rural e a vida urbana; ou as vidas nas fazendas de criação de fortes touros e de flores perfeitas; ou as dos grupos sociais padronizados e a do Vale do Foda-se; da exclusão e da personalidade. A animação deixa claro as diferenças entre esses dois lados das cercas nesse elemento crítico que parece ser o central do roteiro.

A cerca vermelha

G., além de todos os rótulos que carregam por ele e daqueles que ele carrega com orgulho, tem uma certa profissão. Depois de anos na academia como estudante e pesquisador, conseguiu uma posição confortável dentro dela e, pasmem, na sua área! Contudo, em um determinado momento da carreira, poucos anos depois de seu começo nas pesquisas profissionais, ele resolveu estudar um novo “microcampo” de sua área geral. Começou devagar, porém, logo desistiu do projeto. Em poucas leituras bem selecionadas verificou que havia uma patente sobre uma área similar àquela que queria estudar. Essa patente, registrada em um país europeu, claramente impunha exclusividade à empresa que a protocolou. Qualquer variação de estudo que possibilitasse qualquer ligação com o “trabalho original” devidamente patenteado poderia ser alvo de processo judicial.

“Melhor não arriscar!” e deletou a pasta com uma série de artigos salvos em PDF.

Os cercamentos fizeram parte de nossa história e estão no embrião do capitalismo tal qual o conhecemos. A partir do momento em que esse sistema econômico criou as classes, essas fizeram por onde para delimitar e bolar uma estratégia clara de dominação por meio do poder financeiro e da comunicação. Moldaram leis que são favoráveis aos seus interesses particulares e que excluem uma massa enorme de pobres do conceito de direito. Uma dessas leis foi aquela sobre o furto de madeira sobre o qual Marx escreveu uma série de artigos em 1842. Uma atualização desse pensamento dominante do século XIX é o atual sistema de patentes e direitos autorais no mundo; uma metáfora ao mesmo pensamento são as cercas do Touro Ferdinando.

A pauta de Marx, que naquele ano defendera sua tese de doutorado há pouco tempo, era uma série de debates sobre a punição de pobres que furtassem madeira caída no chão de florestas. Em uma certa comissão, representantes do povo (alfabetizados e ricos, em toda sua minoria elitizada) discutiam que a madeira, mesmo que tenha caído da árvore por qualquer motivo natural, é propriedade privada e não poderia ser furtada por ninguém. O texto previa fiscais florestais com poder de juízes contratados pelos grandes proprietários, multas exorbitantes e, em caso de não possibilidade de pagamento do valor mirabolante imposto, quem furtou a madeira seria obrigado a trabalhar para o proprietário durante um certo tempo.

O conjunto de artigos foram publicados pela Boitempo no livro batizado de “Os despossuídos” (2017). Além de serem registros da juventude de Marx, as traduções feitas do original mostram a acidez de sua crítica. Abstraindo o tema central, é possível notar o uso frequente de metáforas e sarcasmos nos comentários sobre os posicionamentos dos membros que discutiam e aprovariam o texto final da tal “emenda”.

A alma mesquinha, lenhosa, desalmada e egoísta do interesse enxerga só um ponto, a saber, o ponto em que ela se machuca, a exemplo da pessoa grosseira que, por exemplo, considera um passante como a criatura mais repugnante que há sob o sol só porque essa criatura lhe pisou nos calos. Ele converte seus calos no órgão com que vê e julga; ele converte o ponto em que o passante o toca no único ponto em que a essência da pessoa toca o mundo.

Trecho do artigo de Marx publicado em 27 de outubro de 1842 na Gazeta Renana (Boitempo, 2017, p. 91)

A todo momento, Marx usa a situação para criticar a mescla do interesse particular com o interesse coletivo; o uso privado de uma máquina pública para benefício exclusivo de uma minoria dominante; a questão da propriedade privada e o crime contra os pobres que esse conceito carrega consigo. Veja esse trecho:

Vê-se que o interesse próprio possui dois pesos e duas medidas com os quais pesa e mede as pessoas, duas visões de mundo, dois óculos, um pinta tudo de preto e outro que deixa tudo colorido. Quando se trata de pôr suas ferramentas a serviço de outras pessoas e dourar meios duvidosos, o interesse próprio põe os óculos coloridos, com os quais enxerga suas ferramentas e seus meios envoltos em um brilho mágico, iludindo a si mesmo e a outros com os devaneios aprazíveis e nada práticos de uma alma delicada e confiante. Cada vinco de sua face revela uma bonomia sorridente. Ele aperta a mão do seu oponente a ponto de machucá-la, mas o faz cheio de confiança. No entanto, de repente é preciso checar a sua própria vantagem, é preciso olhar atrás dos bastidores, onde desaparecem as ilusões do palco, verificar ponderadamente a serventia das ferramentas e dos meios. Conhecedor rigoroso da natureza humana, ele põe agora cautelosa e desconfiadamente os óculos pretos e experimentados, os óculos da práxis. A exemplo de um negociante de cavalos traquejado, ele submete as pessoas a uma longa inspeção ocular à qual nada escapa, e elas lhe aparecem tão ínfimas, tão miseráveis e tão imundas quanto o seu interesse próprio.

Não queremos arrazoar com a visão de mundo do interesse próprio, mas sim obrigá-la a ser coerente.

Trecho do artigo de Marx publicado em 30 de outubro de 1842 na Gazeta Renana (Boitempo, 2017, p. 100)

A edição ainda conta com um texto de Daniel Bensaïd, que faz uma apresentação completa sobre o contexto e o impacto daqueles escritos de Marx. Muito além disso, Bensaïd também atualiza a questão do interesse particular e da propriedade privada. Depois de explicar o quiproquó da madeira da Alemanha do século XIX, o autor faz um paralelo com a questão de patentes genéticas no cenário mundial e do uso coletivo da informação pela internet.

A visão do autor é um complemento perfeito à discussão apresentada pela Boitempo ao publicar esses artigos de Marx. O artigo amplia a crítica para exemplos próximos da realidade de membros de qualquer classe social. Seus argumentos nessa tarefa passam tanto pelas patentes mundiais quanto pela pirataria de filmes e CDs. Assim, Bensaïd consegue mostrar de forma clara e fácil de compreender a evolução do pensamento dominante burguês e sua sobrevivência ao longo dos séculos de sua existência.

Embora o artigo faça uma introdução ao cenário daquela época, no fundo, é possível abstrair questões de contexto para focar apenas na crítica central de Marx sobre o uso do Estado pelo interesse particular. A tal “emenda”, que motiva o recém-doutor a escrever, é um mero exemplo de como o pensamento e os valores burgueses funcionam em sua época e quais eram os instrumentos de sua atuação e dominação. Não obstante, esses escritos de Marx são muito fáceis de serem lidos, mesmo sem uma contextualização muito aprofundada. Os artigos foram publicados entre 25 de outubro e 3 de novembro de 1842, na Gazeta Renana. O tom da escrita provavelmente é influenciado pela intenção do discurso elaborado para um determinado público alvo, um coletivo não acadêmico e, em sua maioria, elitizado e alfabetizado. Sendo assim, os artigos têm um estilo diferente de outros escritos mais filosóficos, como “Sobre a questão judaica” e “Crítica da filosofia do Direito de Hegel”, e se aproxima mais do sabor da escrita de “O Capital” (livro 1) e “Manifesto comunista”.

Embora distantes no tempo e no formato, tanto a animação Touro Ferdinando quanto os artigos de Marx no livro “Os despossuídos” são críticas muito valiosas para os dias atuais. Na animação, como já dito, o preconceito com as minorias e, principalmente, dentro da própria minoria é muito evidente. Já no livro, a questão da propriedade privada e o domínio dos interesses privados, nos faz pensar em como os cercamentos evoluíram ao longo do tempo para manter a dominação econômica e social da elite. Apesar de Ferdinando não ser tão sarcástico quanto Marx, ambos conseguem tecer críticas bem interessantes, a depender, claro, do olhar que se quer lançar sobre cada uma dessas obras.

Cinco minutos: espera, contatos frustrados e algumas voltas no parafuso. [Resenha da obra “A outra volta do parafuso”, de Henry James (Penguim)]

Henry James, “A outra volta do parafuso” (Editora Penguin Classics Companhia das Letras, 2011)

O calor infernal das tardes de São Paulo abrira espaço para os ventos quase gelados de setembro. Final de noite, quase começo da madrugada de um novo dia. Em casa apenas o autor deste artigo e suas duas gatas, Raja e Manila. Silêncio. Nem carros, nem motos, nem pedestres ousavam perturbar a calma e a ansiedade do ambiente. As gatas não haviam percebido nada ainda, mas sobre a mesa estavam os instrumentos para a redação deste trabalho: compasso, um copo americano e o tabuleiro de Ouija. Era preciso estabelecer um contato com o sobrenatural para confirmar detalhes da obra de Henry James. Estava prestes a dar mais uma volta no parafuso. Como a governanta, apertara a virtude humana. Mentira. Ele, o autor, na verdade apertara a apreensão, o receio, o temor, o medo. Uma escala de símbolos e de seus valores que, apenas naquele momento, percebera o sentido das aula de Linguística do primeiro semestre e as sutilezas entre os sentimentos quase sinonímicos.

O primeiro teste de comunicação foi feito com o compasso. Crente da existência de Quint e da srta. Jessel e na confiabilidade da governanta, os primeiros invocados seriam os fantasmas da obra “A outra volta do parafuso”. Caso houvesse velas pretas disponíveis, elas estariam acesas. Cinco velas, para ser mais preciso, formando um pentagrama desenhado com sal. A falta dos instrumentos o forçou a improvisar. “Vai sem vela, sem sal e sem cristal mesmo!”, pensou. Em uma folha de sulfite escrevera o abecedário e dez numerais, todos em ordem horária formando um círculo. Não fora difícil relembrar a brincadeira que fazia nos anos do Ensino Fundamental. Não rezou; mas rezava com os amigos quando criança. Apenas posicionou a agulha do compasso no centro do círculo, segurou de leve a extremidade superior e aguardou o contato. O compasso mal se mexeu. Em um determinado momento mostrou a intenção de sair da letra A, mas logo voltou atrás e ficou parado. “Cinco minutos”, foi o tempo que determinou para o primeiro teste. Nada.

O próximo foi o copo. Aproveitou a mesma folha de papel que usara com o compasso; posicionou o copo de cabeça para baixo e esperou. “Cinco minutos”, determinou mais uma vez. Diferente do compasso, este sequer se mexeu. “Espíritos Jamesianos, Quint e srta. Jessel; governanta ou Miles; Douglas ou qualquer um que estiver ouvindo, manifeste-se!”, disse em voz alta. Silêncio. A única perturbação no cenário foi a gata Manila que levantou a cabeça. “Papai está louco de vez, Raja!”, pensou a felina. Raja sequer mexeu a orelha. Manila voltou a dormir. No final do tempo determinado foi a vez do tabuleiro de Ouija. Como esperado pelo leitor, também sem sucesso.

Como fora proposto, o autor lera o livro. Porém, diferente do planejamento ideial, apenas completara a leitura dias antes da primeira data de entrega do trabalho. Quando sentou-se pela primeira vez para apreciar a leitura, percebera, apenas pela introdução, que aquela não seria uma leitura convencional. Já sabia que a confiabilidade da governanta estava em questão: Confiar ou não confiar, eis a questão. Confiar em quem? Por que era preciso dar um voto de confiança à narradora da história? Tão logo começou a leitura, tão logo parou. “Precisarei de tempo para analisar melhor, nem vou começar o primeiro capítulo”, determinou, fechou o livro que ficou aguardando ser lido na semana da independência. Ficou na mesa por longos cinco dias. “Vou primeiro ler os textos teóricos e então partirei para a obra”. Assim fez. Porém, com sua mania repreensível de deixar tudo para o último segundo, o autor apenas pegara o livro para continuar a leitura no domingo, dois dias antes da data agendada pela professora para o debate da obra. Leu durante a tarde de forma lenta e com uma atenção redobrada. Precisou interromper para cuidar da casa e apenas voltou a lê-lo de madrugada.

Ao final da leitura a questão da confiança não era mais central. Ela foi sobreposta por outras mais intrigante: “E aí, Quint e a srta. Jessel existiam ou não?”; “Por que Miles morreu nos braços da governanta?”; “Qual foi o papel da sra. Groose no enredo?”; “Tinha alguém realmente vivo além da governanta na casa ou até ela estava morta e aqui era um purgatório para uma alma supostamente pura e platonicamente apaixonada pelo tio das crianças?”. Almejava por respostas e, para tanto, resolveu ficar alguns minutos refletindo; relendo; analisando. Chegara a uma resposta? Não. Mas precisava fazer o trabalho, era imprescindível para a nota final. “Ok, vamos pensar melhor”. Aqui estão os pensamentos do autor. Antecipo: ele acreditou nos fantasmas e confiou na narrativa da governanta, algo muito estranho para uma mente maliciosa e escorpiana que tende a desconfiar de tudo e de todos e, além disso, enxergar intenções sexuais onde sequer há falas ou gestos.

Logo de cara o leitor é apresentado a um ambiente de mistério. Um narrador testemunha que não se identifica descreve uma reunião de algumas senhoras e senhores que contam historinhas de terror. Sim, historinhas no diminutivo, pois assim seriam, até Douglas, um dos senhores da roda, advertir que a história que ele contaria era “horrível demais” e que nunca havia sido ouvida por ninguém além dele. Suspense. Apreensão. A introdução cumpre seu papel: introduz o leitor no mesmo cenário daquela roda de conhecidos. Nos faz dar a primeira volta no parafuso da apreensão e, principalmente, da atenção. Se o personagem advertiu que era uma história horrível, o que o leitor pode aguardar além de uma história horrível?

Este ambiente inicial parece ser crucial para o voto de confiança atribuído à narradora, ou seja, à governanta. Pode-se, logo de cara, desconfiar de sua índole e supor que ela era, na verdade, uma pedófila que abusava de seus protegidos. Suposição. Apenas uma suposição para um leitor atento e que ficou marcado por esta informação. Confesso que não fiquei marcado por essa informação. Ela passou desapercebida. Talvez essa volta do tal parafuso tenha sido perdida. Caso não fosse a interpretação da história mudaria.

A nossa interpretação dos seres vivos é mais fluida, variando de acordo com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser. (CANDIDO et al, 1972, p. 59)[1]

Apesar da tendência de olhar para a complexidade do ser humano, compará-la relativamente à da personagem e desconfiar de seu caráter, é possível, como já fora expresso, negar a desconfiança e acreditar na narrativa. A governanta, logo em suas primeiras palavras se mostra suscetível e deslumbrada com o que contará ao leitor. Por um lado confesso sua “[…] terrível suscetibilidade a impressões” (p. 48), por outro, se admira com a comodidade de sua recepção e as boas-vindas incomuns para alguém de sua classe social. “Creio que eu previra, ou temera, me ver diante de algo de tal modo melancólico que o que de fato encontrei proporcionou-me uma surpresa boa” (p. 17)[2], nos confessa ela.

Aliás, confissões são a marca central de sua narrativa. De forma transparente – pelo menos do ponto de vista de um leitor que confiou em suas palavras –, a governanta coloca no papel suas impressões, seus “voos e quedas”, as “gangorras de palpitações boas e más”; oscilações que nenhum ser vivo consegue escapar, mesmo que tente. É esta sinceridade da governanta que conquista, logo no começo, a confiança do leitor disposto a compartilhar os altos e baixos de uma mulher nova, responsável, de origem pobre e comprometida com a educação de seus protegidos.

Havia na cena uma grandeza que a tornava algo bem diverso do meu pobre lar, e imediatamente surgiu à porta, de mãos dadas com uma menininha, uma pessoa cortês que me fez uma mesura tão reverente quanto se eu fosse a dona da casa ou uma visitante de distinção. Na Harley Street a casa me fora descrita em termos mais modestos, e esse fato, quando o relembrei, fez-me ter o proprietário em mais alta conta do que antes, levando-me a pensar que eu viria a desfrutar algo mais que o prometido. (p. 18)

O quarto, espaçoso e imponente, um dos melhores da casa, a enorme cama de baldaquino, quase digna de um rei, as abundantes colgaduras estampadas, os espelhos compridos nos quais, pela primeira vez, pude me ver da cabeça aos pés, todas essas coisas pareciam – tal como o encanto extraordinário de minha pupila – vantagens adicionais. (ibid., grifos nossos)

A questão dos altos e baixos da vida se intensifica quando lemos sobre sua origem pobre (como destacado nas citações acima). Filha de um pároco e de origem humilde, a governanta sequer havia apreciado seu reflexo em um grande espelho. Estas pequenas informações mostram o quanto ela estava impressionada com aquela realidade que até hoje é acessível apenas a uma parcela ínfima da população. Construir esse paralelo entre a obra de James e nosso mundo atual também pode ser uma pista do porque é possível confiar na narradora. Afinal, por que desconfiar de alguém que é tão transparente a ponto de relatar suas origens e seus temores? Afinal, mais uma vez, por que desconfiar de uma mulher com clareza sobre a posição de seu gênero? Esse segundo “afinal” é claro na passagem na qual a governanta conversa com a sra. Grose e juntas levantam a hipótese de entrar em contato com o tio de seus protegidos e dono daquela mansão onde estava:

[…] olhando para mim, ela claramente não era capaz. Em vez disso, até mesmo ela – como uma mulher que compreende outra mulher – conseguia ver o que eu própria estava vendo: o deboche, o riso, o desprezo que ele manifestaria por eu não suportar ser deixada a sós, e pelo delicado mecanismo que eu pusera em movimento a fim de atrair sua atenção para meus encantos desprezados. (p. 91, grifos nossos)

Classe e gênero, assuntos caros em nossa sociedade, são levantados em poucas passagens da obra de Henry James. Apesar de serem passagens sutis, elas têm força na defesa da confiabilidade da narradora. Supostamente apaixonada pelo tio das crianças e dono da mansão, a governanta não poderia ter o luxo de se rebaixar e quebrar o acordo feito com ele na Harley Street. Ademais, seu senso de responsabilidade, sua coragem e seu caráter extraordinário para com a educação das crianças haviam de ser recompensados, ao menos ela almejava essa recompensa, por meio da concretização desse “amor platônico” de quem vira o apaixonado apenas duas vezes na vida:

Era um prazer, nesses momentos, sentir-me tranquila e justificada; sem dúvida, talvez, refletir também que graças à minha discrição, meu sóbrio juízo e meu severo senso geral de decoro, eu estava dando prazer – se é que ele pensava nisso! – àquele a cuja pressão eu cedera. […] Em suma, eu me via, confesso, como uma jovem extraordinária, e confortava-me a confiança de que esse fato haveria de se manifestar de modo mais público. Pois bem, eu precisava mesmo ser extraordinária para enfrentar as coisas extraordinárias que em pouco tempo começaram a dar os primeiros sinais. (p. 31, grifos nossos)

É possível desconfiar de alguém que diz ter um juízo sóbrio e um “severo senso geral de decoro”? Sim. Desconfiar de: (1) uma mulher (2) de origem pobre (3) que cativa o leitor com seus deslumbramentos? Também é uma opção do leitor. Palavras manipulam, para o bem ou para o mal. Escolhemos, aqui, confiar. Afinal, sua percepção do mundo que a rodeia parece ser clara e, ao mesmo tempo, mutante. Ela já se confessara ser suscetível e, além disso, deu carta branca ao leitor para questionar a verossimilhança de sua narrativa dado o estado mental testado pelas provações que aquele cargo propunha (p. 53). Contudo, seu estilo de escrita e sua sinceridade mostram o quão fiel são seus relatos. Aqueles voos e quedas são retratados de maneira justa quando a narradora apresenta sua visão quanto à casa e os ambientes que a rodeiam. Se em sua recepção tudo era maravilhoso, à medida em que seu espírito e sua coragem são testados, o ambiente escurece, se torna mais sombrio e menos detalhado. Após os fantasmas entrarem no enredo e o outono mostrar suas caras, o colorido de Bly perde espaço para um “céu cinzento e grinaldas murchas […] espaços esvaziados e folhas secas espalhadas […] como um teatro após o espetáculo” (p. 95) no qual restara apenas ela para contemplar a decadência do cenário frente aos testes que eram impostos à sua frágil suscetibilidade. O medo tenta se instalar, mas não sobrepõe seu instinto protetor, praticamente maternal.

Para ser justo com as demais mulheres da cena, naquele teatro vazio estavam a governante e a sra. Grose que, para além de subordinada, se tornara amiga e confidente. Ela se tornara um porto (quase) seguro para o qual a narradora poderia velejar quando necessitava esclarecer seus pensamentos e preocupações quanto à integridade das crianças e o dever que assumira com o tio dos pequenos. Embora tenha se mostrado resistente a apoiar a amiga na última aparição da srta. Jessel, é a sra. Grose que apoia a amiga e enxerga a influência dos fantasmas no discurso da bela e inocente Flora. Sem muitos questionamentos, a antiga administradora de Bly faz o que pode para ajudar nos planos da governanta, embora não esperasse o trágico desfecho e a vitória de Quint ao roubar a alma de Miles no confronto final do livro.

Falando em fantasmas, eles são a segunda questão do leitor: existem ou não? A resposta é influenciada pela confiabilidade atribuída à narradora. Caso desconfie da narrativa, os fantasmas serão visões de uma governanta perturbada, histérica e esquizofrênica. Caso contrário, e esta é a posição deste trabalho, os fantasmas são reais e são os impulsionadores da força e da coragem dela. A realidade dos fantasmas fica evidente em uma das conversas da governanta com a sra. Grose:

Tarde naquela noite, quando a casa já dormia, tivemos outra conversa em meu quarto; nessa ocasião a sra. Grose concordou plenamente comigo que não havia como questionar que eu vira exatamente o que vira. Para fazê-la comprometer-se por completo quanto a esse ponto, constatei, bastava perguntar-lhe como, se eu havia “inventado” a história, me fora possível apresentar, para cada uma das pessoas que me aparecera, uma imagem que revelava, até o mínimo detalhe, suas características específicas – um retrato com base no qual, ao lhe ser exibido, ela pôde reconhece-las e nomeá-las no mesmo instante. (p. 63)

As descrições de suas visões, feitas pela governanta, eram precisas: um homem belo, ruivo e não pertencente à classe social de suas roupas – era Quint, o antigo lacaio da casa. O mesmo, contudo, não acontece com a segunda aparição: o fantasma da sra. Jessel. A governanta supusera que a mulher que vira do outro lado do lago era sua predecessora, afinal, não conseguira visualizar sua aparência. A postura da narradora neste momento parece fugir daquela apresentada até então: ela supõe ser a antiga governanta; tem certeza disso; diz que Flora também a viu, mas impede que a sra. Grose confirme tal informação com a criança. Uma ambiguidade latente que quase coloca em cheque a confiança atribuída à narradora. “Quase” porque o leitor tem a opção de se apegar ao desespero da mesma: “Quanto mais repiso, mais vejo, e quanto mais vejo, mais tenho medo. Não sei mais o que eu não vejo – que medo eu não tenho!” (p. 58). Lembrando Candido, as personagens de romance, principalmente aquelas personagens de natureza (de Johnson) ou esféricas (de Forster), são tão complexas quanto os seres vivos. Na caracterização de Forster (apud CANDIDO et al, 1972), esse tipo de personagem têm características que “[…] se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender” (p. 63). A surpresa aqui é a incoerência. Como a governanta ter tal postura? Como pôde ela, em seu relato fiel e sua postura forte, assumir tal pressuposição e levar a informação adiante de forma tão enfática? Como dito: o medo, o incomum, o sobrenatural. Nas palavras dela:

Eu só podia seguir em frente tomando a “natureza” como minha confidente e levando-a em conta, tratando minha monstruosa provação como um esforço numa direção estranha, é claro, e desagradável, mas algo que exigia, afinal, para manter uma fachada serena, apenas outra volta no parafuso da virtude humana comum. (p.145)

A ambiguidade decepcionou? Sim. Contudo, mais decepcionante que isso foi o fato de nem o compasso, nem o copo e muito menos o tabuleiro de Ouija ter respondido a única questão que tinha a ser feita: “Era mesmo a srta. Jessel ali?”. Afinal, essa foi a única questão que ficou em suspenso a todo o momento para o leitor que confiou na governanta. Foi esse seu único defeito: se entregar, por um segundo, ao medo e supor algo com tanta convicção para levar a impressão até o final do livro. Porém, vale lembrar que “A força das grandes personagens vem do fato de que o sentimento que temos da sua complexidade é máximo; mas isso, devido à unidade, à simplificação estrutural que o romancista lhe deu” (CANDIDO et al, 1972, p. 59). A complexidade da governanta de Henry James é a complexidade do ser vivo: quem, afinal, não se entregaria ao medo de uma aparição? Quem não confiaria no instinto maternal e protetor para dar nome ao indescritível e ter algo mais concreto contra quem brigar? Embora a srta. Jessel seja uma suposição, a fantasma estava ali, era uma ameaça e precisava ser combatida com as informações disponíveis até então. Sendo assim, a ambiguidade é perdoada, embora a luta da governanta tenha sido perdida.

[1] CANDIDO, Antonio. Et al. A personagem do romance. In: ______. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiuva, 1972. Pp. 53-80.

[2] As citações da narrativa são referentes à obra: JAMES, Henry. A outra volta do parafuso. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

Resenha apresentada na disciplina Introdução aos Estudos Literários 2, ministrado pela professora Viviane Bosi, do curso de Letras (USP).

O humano, a religião e a sociedade de “Os irmãos Karamázov”, de F. Dostoiévski

Ler Dostoievski, em especial “Os irmãos Karamázov”, é mergulhar de cabeça no ser humano, na Rússia e na religião. A obra, a última escrita pelo autor, em 1879, conta a história de três irmãos: Dmítri, Ivan e Alexei e a relação conturbada deles com o pai Fiódor (há um quarto filho também, quem será?). Não, não me esqueci de colocar os segundos nomes de cada um dos personagens aqui. De fato, todo e qualquer personagem sempre aparece com um nome composto difícil de se pronunciar e ainda mais complicado de memorizar e, claro, pronunciar. A única exceção são as crianças, mas mesmo elas recebem nomes compostos nas primeiras vezes que aparecem.

É curioso observar, logo de cara, que toda a obra é narrada por alguém que jamais se identifica, mas é possível ter algumas suspeitas ao longo da obra. É ele, esse narrador misterioso quem escreve, em primeira pessoa, o prefácio do livro. Logo de cara ele diz que irá narrar a biografia de seu herói, Alexei Fiódorovitch Karamázov. Ele tem, portanto, uma enorme admiração sobre Aliocha, o apelido de Alexei. Essa informação, quase no final do livro é relevante para suspeitar quem é o tal narrador. Além disso, nos primeiros capítulos ele dá a entender que mora na mesma cidade russa onde a maior parte da história se passa, mais uma pista para aumentar a tal suspeita. Apesar dessas suspeitas, saber quem é ou não é o narrador pode ser desnecessário. Contudo, em alguns momentos importantes da história ele se desculpa por não narrar os fatos com extrema precisão – essas desculpas são ainda mais veementes no momento crucial do livro; ou seja, estamos reféns da visão e opinião do narrador, o que nos permite desconfiar de algumas passagens, mas poucas.

O último canto do cisne
Como não é possível desvendar (será?) quem é o narrador, nos ateremos à quem nós conhecemos: Dostoiévski, ou Dodô, para os íntimos e amantes.

Dizer que a história é sobre as relações entre o pai e seus três filhos é resumir, ao máximo, o enredo de “Os irmãos Karamázov”. A obra, composta por seis partes (Prefácio, Quatro partes internas e o Epílogo) é profunda, uma imersão sobre a natureza desses personagens e, claro, muito mais. Até os personagens secundários, como o mestre Zózimo, Grutchénka, Kátia Ivânovna (aqui coloco o nome composto porque há mais de uma Kátia), Rakítin e vários outros, têm uma complexidade surpreendente. Cada um a seu modo, eles e elas expressam a visão de Dostoiévski sobre a natureza humana: seus conflitos entre o amor e o ódio, entre a religião e o ateísmo, o “Crime e o Castigo”.

Por ser a última obra escrita pelo autor russo, a impressão que fica é que este livro é seu “canto de cisne”. Em um determinado momento, um dos personagens secundários, que morreria seis meses depois do acontecimento narrado no livro, faz um discurso grandioso e eloquente. O narrador da história chega a comentar que aquele era o canto do cisne que, prevendo a sua morte, a anuncia em sua forma mais bela. É propício fazer essa mesma comparação com Dodô. (Será que ele previa sua morte também, afinal ele morreu em 1880!)

Dada essa característica, a obra parece unir todo o mundo de Dostoiévski em uma só obra. Digo “parece” porque até ler “Os irmãos Karamázov”, tive contato apenas com “O eterno marido” e “Crime e Castigo”. Esta obra eu li em uma versão de bolso, mas foi um dos livros que mais me marcaram até hoje (além disso, ele será o próximo livro do Dodô que relerei). Já “O eterno marido”, foi minha porta de entrada ao mundo do escritor. Lembro que até ler essa obra nunca tinha visto uma história de um homem que é traído, apanha da mulher e sempre volta para seu amor, resignado e fiel. Isso me surpreendeu ao ponto de também marcar minhas leituras. Sabe aquele momento em que você está lendo algo ou mesmo vivenciando algo e pensa: “Dostoievski escreveu sobre isso já!” ou “Queria que esse machista fosse o eterno marido!”? Pois bem, as obras do autor me marcaram, já há muito tempo, desta forma: sempre alguma coisa me remete às duas obras que eu li dele. (Imagine quando ler todas?)

Pois bem, voltando a obra da vez, comentei que ela parece reunir todo seu universo. Imagino (porque li apenas críticas) que “O Idiota” seja o pai Fiódor, assim como “O eterno marido”; Dmitri, o filho mais velho, encarna a obra “Crime e Castigo”; talvez “O adolescente” esteja presente em Alexei e/ou em Kólia, um dos personagens secundários, e por ai vai. (Quem leu todas as obras dele, por favor, confirme ou refute minhas suspeitas lá nos comentário.) Esse canto do cisne de Dostoiévski parece aquele “filme de toda a vida” que passa em frente aos olhos quando alguém está morrendo. Ele talvez tenha sentado, avaliado toda sua obra e sintetizado todas as suas impressões em uma só, magnífica, envolvente, curiosa, sensacional.

A humanidade, segundo Dostoiévski
Dadas as minhas impressões, vamos ao que interessa deste post? Reuni abaixo as melhores frases que encontrei em “Os irmãos Karamázov”. Quando li sobre a obra na internet antes de começar a leitura, vi que Freud a leu e a classificou como “a maior obra da história”. Segundo a Wikipedia (que embora não seja a melhor fonte de consulta, serve para nos dar uma noção da obra), “Freud considera esse romance, juntamente com Édipo Rei e Hamlet, três importantes livros a respeito do embate pai e filho, e retratam o complexo de Édipo.”

Ok, se Freud falou realmente isso, vamos destacar o que Dostoiévski fala sobre a natureza do homem? O autor traça, ao longo da obra, várias afirmações sobre como é e como se comporta o homem em tais ou quais situações. Além disso, há outras duas questões que saltam aos olhos: a visão sobre a sociedade e a Rússia e os conflitos da Religião.

Em inúmeras passagens, Dostoiévski traça características sobre como era a Rússia do século XIX. Ele fala sobre o suicídio, sobre o embate entre ricos e pobres, o exaustivo trabalho de camponesas e de crianças em fábricas, entre outros.

Nas questões sobre religião, o embate entre a fé e o ateísmo fica muito evidente. Parte da história se passa em um mosteiro, portanto, questões sobre a fé são colocadas em primeiro plano. Há inúmeras passagens da Bíblia cristã e elas são citadas junto de referências do tradutor da edição (Herculano Villas-Boas, da Martin Claret, 2013). Em outros momentos, a fé abre caminho para o ateísmo e o questionamento da existência de Deus. Aliás, uma das passagens mais incríveis (pra mim) foi justamente quando Deus volta à terra e é preso por um religioso. Na cadeia, há um embate extremamente revelador sobre o que os homens fizeram da religião. Essa passagem é uma história dentro da história e isso é genial!

Como dito, as citações abaixo, mostram algumas características traçadas por Dostoiévski sobre a Rússia, o ser humano e a religião de seu tempo. Tentei elencar os tópicos de acordo com temas semelhantes. O objetivo de copiar essas passagens aqui é dar um gostinho sobre a obra. Não coloquei à qual personagem pertence cada e qual fala para aumentar esse “gostinho”. Minhas citações preferidas estão destacadas e no final do artigo há a referência da obra. Os giphys são apenas ilustrativos…

Sociedade e a Rússia

Suicídio (Blue Whale?) e outras características do povo russo

Conheci uma jovem da penúltima geração “romântica” que – depois de muitos anos de um amor misterioso por um senhor com quem poderia se casar tranquilamente – acabou inventando obstáculos insuperáveis ao matrimônio. Em uma noite de tempestade, lançou-se do alto de um penhasco em um rio profundo e agitado, perecendo vítima de sua própria imaginação, só para se assemelhar à Ofélia, de Shakespeare. Se esse penhasco, que ela estimava tanto, fosse menos pitoresco, e em seu lugar se encontrasse um rio raso e prosaico, talvez ela não se suicidasse. Esse fato é real, e acredito que as mais recentes gerações russas assistam muitos casos semelhantes. (p. 21-22)

[…] Compreendia perfeitamente que a alma resignada do povo da Rússia, oprimida pelo trabalho e pela desgraça, especialmente pela injustiça e pelos pecados incessantes – seus e do mundo –, não tinha maior necessidade, maior suave consolo, do que encontrar um santuário ou um santo, cair aos seus pés e adorá-lo. (p. 44)

É assim que ele chamava a segunda esposa: “a possuída”. Foi Grigóri quem mostrou a Aliocha o túmulo da “possuída”. Levou-o ao cemitério: apontou, em um canto distante, uma lápide de metal, modesta, mas decente, onde se gravavam o nome, a condição, a idade da finada, a data de sua morte; abaixo, figuravam quatro versos, como vemos muitas vezes no túmulo das pessoas de classe média. (p. 36)

Como age a juventude russa, ao menos parte dela? Ela vai a uma taverna imunda, como esta aqui, e senta-se em um canto. Esses jovens não se conheciam e ficarão quarenta anos sem se ver. O que eles discutem, nesses momentos, na taverna? Só questões essenciais: se Deus existe, se a alma é imortal. Os que não acreditam em Deus debatem o socialismo, o anarquismo, a renovação de toda a humanidade segundo novas leis, mas essas questões são sempre as mesmas, embora vistas de novos ângulos. E boa parte da juventude russa, a mais original, é hipnotizada por essas questões. (p. 260)

Na Rússia, embora seja absurdo decapitar um irmão pela simples razão de que se tornou um de nós e foi tocado pela graça, também vamos muito bem, obrigado. Entre nós, torturar, espancar, é uma tradição histórica, um prazer rápido e imediato. (p. 267)

O socialismo
— Quero viver pela imortalidade, e não aceito outro compromisso.
Da mesma forma, se chegasse à conclusão de que não há Deus nem imortalidade, viria a ser imediatamente ateu e socialista. (Pois o socialismo não vem a ser apenas a questão dos trabalhadores, ou do quarto estado, mas, sobretudo, a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea; a questão da torre de Babel, que se constrói sem Deus, não para atingir os céus a partir da terra, mas para trazer os céus à terra.) (p. 40)

Mulheres, crianças e o trabalho


Mais tarde, surpreso, soube de médicos especialistas que não existia simulação alguma, tratava-se de uma terrível doença das mulheres, resultante, especialmente na Rússia, das duríssimas condições de vida de nossas camponesas. A moléstia se originava de trabalhos esmagadores, executados logo após o parto difícil e doloroso, efetuado sem nenhum apoio médico; e também do desespero, dos abusos, etc., que algumas naturezas femininas não conseguem suportar, apesar de estarem disseminados. (p. 63)

Vi, nas fábricas, até crianças de nove anos: frágeis, doentes, deformadas e já depravadas. Numa fábrica sem ar, o barulho das máquinas, o dia inteiro, todo santo dia, muito trabalho, palavras obscenas e muita bebida: é da bebida que precisa a alma de uma criança tão nova? Ela precisa de sol, de brincadeiras infantis, de bons exemplos por toda parte e de um pouco de amor. (p. 348)

Conflitos entre ricos e pobres


Assim, as nossas crianças – não as suas, as nossas –, os filhos dos mendigos desprezados, mas nobres aprendem a conhecer a verdade, já aos nove anos. Como os ricos poderiam aprender a verdade? Eles nunca penetram nestas profundezas, enquanto meu Iliucha penetrou toda a verdade, no mesmo instante em que, na praça, ele beijava a mão que me batia. Ela entrou dentro dele, essa verdade, marcou-o para sempre! (p. 230)

— Papai – ele me perguntou –, os ricos são os mais fortes, neste mundo?
— Sim, Iliucha, não há ninguém mais poderoso do que o rico.
— Papai – ele disse –, eu vou ficar rico, serei oficial e vencerei todos os nossos inimigos; o czar vai me recompensar, então ficarei ao lado do senhor e ninguém vai ousar… – depois de uma pausa, ele continuou, com lábios ainda trêmulos: — Papai, que cidade ruim é a nossa, papai!
— Sim, Iliucha, não é uma cidade cidadã, é uma cidade vilã. (p. 231)

Crime e Castigo
Dizem que no estrangeiro o criminoso raramente se arrepende, pois as doutrinas contemporâneas confirmam a sua opinião: seu crime não seria um crime, mas simples revolta contra a força que injustamente o oprime. A sociedade o aparta de si mesma por meio de uma força que o esmaga de forma meramente mecânica, e acompanha essa exclusão com ódio (ao menos, é o que contam na Europa); com ódio, digamos, e com uma indiferença, com um esquecimento, absolutos, quanto ao destino posterior desse homem. (p. 81)

Liberdade e resignação

[…] nada nunca foi mais insuportável para o homem e para a sociedade humana do que a liberdade! (p. 280)

Em toda parte, em nossos dias, o espírito humano, de forma ridícula, começa a esquecer-se da verdadeira garantia do indivíduo não se encontra isolada em seu esforço pessoal, mas sim na solidariedade. Esse terrível isolamento decerto vai terminar; todos compreenderão, ao mesmo tempo, que a separação, uns dos outros, é contrária à natureza; todos se surpreenderão por terem permanecido tanto tempo nas cavernas, nas trevas, sem ver a luz. (p. 336)

A psicologia do humano

Fingimento, realismo e amor à humanidade
De fato, Fiódor Pávlovitch sempre gostou de fingir atitudes, representar algum papel, às vezes sem necessidade alguma, nem que fosse para prejudicar a si mesmo, como nesse caso. Essa é, aliás, uma característica especial de muitas pessoas, mesmo as nada tolas. (p. 25)

Um verdadeiro realista, se ele for incrédulo, sempre encontra em si mesmo a força e a faculdade de não acreditar nem mesmo em milagre e, se o milagre aparecer como fato incontestável, duvidará de seus próprios sentidos, sem admitir o fato; se o admitir, será como um fato natural, mas para ele desconhecido até então. Para o realista, não é a fé que nasce do milagre; é o milagre que nasce da fé. (p. 39)

— É exatamente – disse o mestre – o que me dizia, há muito tempo, o médico de meus amigos, homem maduro e inteligente. Ele se exprimia tão sinceramente quanto a senhora, embora brincando, mas com tristeza. “Amo”, ele me dizia, “a humanidade; mas, para minha surpresa, quanto mais amo a humanidade em geral, menos amo as pessoas em particular, como indivíduos. Mais de uma vez, sonhei ardentemente em servir a humanidade, e talvez até subisse ao calvário por meus semelhantes, se fosse preciso, enquanto não consigo viver com ninguém por dois dias no mesmo quarto – sei por experiência. Quando vejo alguém perto de mim, sua personalidade oprime meu amor-próprio e incomoda a minha liberdade. Em vinte e quatro horas, posso chegar a sentir antipatia pelas melhores pessoas: por uma porque passa muito tempo comendo, por outra porque está resfriada e espirra sem parar. Assim que entro em contato com os homens, torno-me inimigo deles. Em compensação, invariavelmente, quanto mais detesto as pessoas em particular, mais ardo de amor pela humanidade em geral.” (p. 73)

Amor, paixão e ciúmes

Um homem apaixonado pelo corpo de uma mulher, mesmo apenas por uma parte desse corpo (um voluptuoso me entende imediatamente), por ela vai dar seus próprios filhos, vai vender seu pai, sua mãe e sua pátria; se for honesto, vai roubar; se tranquilo, vai assassinar; se fiel, vai trair. (p. 96)

Mas o que pode existir em um amor que é preciso espionar? O que vale um amor, se for preciso vigiá-lo a todo custo? Os verdadeiros ciumentos nem fazem essas perguntas, mas entre eles há até pessoas de alma elevada, que, entretanto, se encontram de pé, às portas, escutando e espionando, que, se compreendem perfeitamente, como os seus “nobres sentimentos”, toda a vergonha com que se cobrem voluntariamente, nunca sentem remorsos, ao menos enquanto estão espionando. (p. 423)

Ira
— A ira! – disse o capitão. – É bem isso. Uma grande ira em um ser tão pequeno. […] Essa idade é sem piedade. Quando estão sozinhos, esses meninos são uns anjos, mas, quando se juntam, tornam-se impiedosos, principalmente na escola. (p. 229)

Todo homem tem um demônio dentro de si: acesso de cólera, sadismo, masoquismo, ataques de paixões cruéis, doenças contraídas sexualmente, ou gota, crises de fígado, etc. (p. 268)

Tolice e distração
Pensativo e distraído, sua face era agradável, seu corpo forte e alto, seu olhar estranhamente fixo, o que caracteriza as pessoas distraídas. (p. 49)

[…] quanto mais somos tolos, mais vamos diretamente ao coração da matéria. Quanto mais tolo, mais claro. A tolice é concisa e sem armadilhas, enquanto a inteligência dá muitas voltas e nunca chega ao ponto. A inteligência é desleal; a tolice é honesta e vai direto ao assunto. (p. 263)

Liberdade 2.0

Para o homem, uma vez livre, não há preocupação mais constante, mais dolorosa, do que encontrar, com a maior rapidez, ‘a quem adorar’. Contudo o homem só deseja adorar o que é indiscutível, o que é adorável para todos, de forma unânime. […] Cada povo cria o seu Deus – ou os seus deuses […] para o homem, não há preocupação maior além de encontrar, o mais cedo possível, a quem ceder esse dom da liberdade que o infeliz carrega ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes uma consciência serena. […] o segredo da existência humana está não apenas em viver, mas também em encontrar um motivo para viver. Sem uma ideia clara do motivo da existência, o homem prefere renunciar à vida, mesmo cercado por montes de pães, prefere destruir-se a permanecer na terra. […] Para o homem, não há nada mais atraente que o livre-arbítrio, mas tampouco existe algo mais doloroso. (p. 282)

Infância
Jovens de alma e coração puros, ainda quase crianças, muitas vezes gostam de entreter-se com cenas e imagens que seriam repugnantes até mesmo para soldados; aliás, os soldados sabem menos a respeito do que os jovens de nossa sociedade educada. (p. 34)

Só guardei maravilhosas lembranças da casa paterna; para o homem, essas são as lembranças mais preciosas de todas, se o amor e a harmonia reinarem um pouco em sua família. (p. 321)

Mentiras, sofrimentos e alma criminosa

Sabe, podemos dizer… criamos a palavra para mentir por meio dela. E, desde que criamos a palavra, todos mentem. Todos dizem que odeiam o mal, mas consigo mesmos, na verdade, todos amam o mal. (p. 669)

O gênero humano não reconhece seus profetas e os massacra, mas o homens amam os seus mártires e veneram os que eles mesmos levaram ao suplício. Você trabalha por todos, age pelo porvir. (p. 356)

Se neste planeta tudo fosse razoável, nada aconteceria. […] Os homens levam toda essa comédia muito a sério, apesar de toda a sua inteligência indiscutível. É aí que mora o drama humano. Ah, bem, eles sofrem, com certeza, mas… em compensação, eles vivem, vivem realmente, não fantasticamente, pois é o sofrimento que é a vida. (p. 742)

“[…] De forma positiva, senhores jurados”, exclamou Ippolit Kiríllovitch, “podemos afirmar que a natureza profanada e um coração criminoso vingam-se, eles mesmos, de forma muito mais completa do que o faz toda a nossa justiça terrena! Aliás, muito mais: a justiça e o castigo terrestres são muito mais brandos do que o castigo da própria natureza, são até mesmo, nesses dados momentos, indispensáveis à alma do criminoso, para salvá-la do próprio desespero.” (p. 389)

Religião

O que é um mestre? Mestre é quem absorve a tua alma e a tua vontade e transforma-as nas dele. Ao escolher um mestre, tu abdicas da própria vontade, cedendo-a a ele, em total obediência e resignação. O penitente suporta voluntariamente essa prova, esse duro aprendizado, na esperança, depois de longo estágio, de vencer a si próprio: de dominar-se a ponto de finalmente atingir – depois de ter obedecido por toda a vida – a liberdade perfeita, isto é, a liberdade diante de si mesmo, evitando o destino dos que viveram sem se encontrar a si mesmos. Essa invenção, a instituição dos mestres, não é teórica, mas fruto de uma prática milenar no Oriente. (p. 41)

— Se o pecado, a mentira, a tentação fazem parte de nós, existe, entretanto, um ser santo e sublime em algum lugar do mundo. Ele possui a verdade, ele conhece; então, um dia ele descerá até nós e reinará em toda a terra, como prometeu. (p. 44)

— A ideia-mestra de meu artigo é a de que o cristianismo, nos três primeiros séculos de sua existência, aparece na terra como uma igreja, e não era outra coisa. Quando o Estado pagão romano adotou o cristianismo, aconteceu que, tornando-se cristão, incorporou a Igreja a ele, mas isso era inevitável. […] A Igreja Cristã, ingressando no Estado, nada podia ceder de seus fundamentos, da pedra sobre a qual ele repousava; só podia perseguir os seus fins, firmemente estabelecidos e indicados pelo próprio Senhor; entre outros: transformar o mundo inteiro em Igreja e, consequentemente, o antigo Estado pagão também. Dessa forma, (isto é, em vista do futuro), não é a Igreja que deveria buscar um lugar definido no Estado, como “toda associação pública” ou como “uma associação a se propor fins religiosos” (para empregar as palavras do autor que eu refuto); mas, ao contrário, todo Estado terreno deveria, a seguir, converter-se em Igreja; não ser nada mais além de Igreja; renunciar a seus outros fins incompatíveis com os fins da Igreja. […] Se a Igreja absorvesse tudo, ela excomungaria o criminoso e o insubmisso, mas não cortaria as cabeças. […] Por seu crime, ele insurgiria não só contra os homens, mas contra a Igreja de Cristo. (p. 78-9)

— Que pena. Não sei o que faria com o primeiro fanático que inventou Deus. Enforcá-lo não seria o suficiente!
— Sem essa invenção, não existiria civilização. (p. 157)

[…] se Deus existe, se Deus realmente criou a terra, então, como nós sabemos, positivamente, ele fez a terra segundo a geometria euclidiana, e criou o cérebro humano dando-lhe apenas uma noção, a noção das três dimensões do espaço. Mas havia, e ainda há, geômetras e filósofos, mesmo entre os mais importantes, a duvidar que todo o universo, ou, em sentido ainda mais amplo, que toda a existência tivesse sido criada segundo a geometria de Euclides; eles até ousam sonhar que as paralelas se encontram no infinito… (p. 261)

— Penso que, se o diabo não existe… se ele foi criado pelo homem… o homem fez o diabo à sua imagem e semelhança. (p. 265)

O próprio velho Lhe fala que Ele não tem o direito de acrescentar nada ao que já disse. Se você quiser, este é o aspecto fundamental do catolicismo romano. (p. 278)

Por alguma predestinação que jamais consegui compreender, fui encarregado de “negar”, mas sou sinceramente bom e totalmente inadequado para a negação. “Não, vá negar, vá, sem a negação não existiria a crítica!”, e o que viria a ser um jornal “sem crítica”? Sem crítica, tudo seria só “Hosana!” Mas, para viver, só “Hosana!” não basta, é preciso que este “Hosana!” passe pelo crivo da crítica, e assim por diante, nesse gênero. (p. 742)

Todas as citações são da obra:

DOSTOÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução de Herculano Villas-Boas. São Paulo: Martin Claret, 2013.